Suspeitas

Escrito por António Ferreira

Luís Montenegro quis resolver o problema da empresa familiar, que lhe poderia vir a causar problemas de suspeição enquanto primeiro-ministro, vendendo a quota à mulher. Como está casado no regime da comunhão de adquiridos, essa venda não resolvia problema nenhum, como se verá de seguida, e servia apenas para não surgir o nome dele no registo comercial. Mesmo isso não é verdade, porque no registo apareceria sempre o nome do cônjuge da sócia. Como qualquer advogado estagiário sabe, enquanto casado com essa sócia continuaria proprietário da quota que tinha acabado de vender. Isto é, a quota continuava a pertencer ao casal. Montenegro quis resolver esse problema transmitindo a quota aos filhos e mudando a sede da empresa, retirando o problema de casa mas mantendo-o na família.
Levantam-se aqui imediatamente suspeitas quanto aos conhecimentos jurídicos de Montenegro e interrogações sobre como poderá ter ficado rico na sua vida profissional se desconhece uma coisa tão básica. Diz ele agora ser especialista em proteção de dados pessoais, sendo essa a atividade de onde a empresa retira a sua fonte de rendimentos. Uma das clientes é a Solverde, que explora vários casinos em regime de concessão. Essas concessões terminam em breve e o governo, presidido por Luís Montenegro, terá de decidir se elas se mantêm na Solverde ou irão ser transmitidas para uma concorrente. Diz Montenegro que não haverá problemas de incompatibilidade porque ele imediatamente se retirará do processo decisório. Isso poderia funcionar na Câmara de Espinho, em que o presidente se podia retirar da sala quando não queria intervir em processos mais espinhosos, mas não é assim no governo. O primeiro-ministro não é um vereador e o governo não é um órgão colegial com funcionamento comparável a um executivo camarário. Mais uma vez, levantam-se dúvidas quanto à sua competência técnica.
Há outro problema. O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) é de 2016, entrou em vigor em maio de 2018 e o frenesim à volta da questão começou algum tempo depois. Falava-se em coimas milionárias e por isso toda a gente se adaptou muito rapidamente. Houve quem ganhasse muito dinheiro com isso, no aconselhamento e em auditorias, mas o filão durou pouco. Basicamente havia que ter cuidado com algumas coisas, nomear um encarregado de proteção de dados, elaborar umas minutas e pouco mais. O problema resolvia-se com alguma facilidade e não justificava, a não ser em casos muito raros, a contratação de avenças de 4.500 euros por mês. Seria de resto curioso perguntar à Solverde quantos incidentes de protecção de dados reportou à CNPD desde a contratação da empresa de Luís Montenegro, ou que serviços concretos prestou essa empresa nesse período e nessa área. Diz-se que outra das clientes da empresa de Montenegro seria uma transportadora rodoviária e que também pagaria uma avença, esta de 1.000 euros/ mês. Não sei quais os serviços prestados, mas de uma coisa tenho a certeza: não há em Portugal uma empresa desse ramo que tenha necessidades a esse preço e na área da protecção de dados e quem ache que sim não conhece o ramo das transportadoras.
Pode tudo ser muito transparente e muito legítimo, mas há perguntas que têm de ser feitas e respostas que não podem resumir-se a meia dúzia de banalidades. As suspeitas circulam e ou são resolvidas ou o governo está ferido de morte.
Agora, de duas uma: ou o primeiro-ministro se demite ou se sujeita, por exemplo num inquérito parlamentar, a responder a todas as perguntas que lhe podem fazer sobre o assunto e abre o arquivo da sua sociedade à comissão de inquérito que venha a ser nomeada. Compreende-se que haja aqui matéria sigilosa, rigorosamente protegida pelo RGPD, mas, como Montenegro sabe, ou talvez saiba, o regulamento admite muitas excepções. E o Presidente da República, por onde anda?

Sobre o autor

António Ferreira

Leave a Reply