A civilidade está intrinsecamente ligada à cidade. A polis grega designava tanto a forma urbis como o modelo de relacionamento social apropriado ao lugar. A notoriedade das cidades condiciona a aspiração das suas instituições e a qualidade de vida dos seus habitantes.
As cidades antigas costumam ser densas e apresentar alguma regularidade tipológica, traduzindo na malha a hierarquia espacial das funções que lhe estavam cometidas (câmara, tribunal, cadeia, mercado, igreja, escola, etc.). Com a industrialização e a concomitante liberalização dos hábitos, a pressão demográfica, o desenvolvimento dos transportes e a promoção higienista, as urbes expandiram-se para lá da muralha em ensanches mais ou menos regrados, afastando-se da utopia moderna. A economia apoiou-se no lucro da promoção imobiliária e esta propiciou as condições materiais à realização ideológica do Estado. A expansão extramuros conduziu ao esvaziamento populacional dos centros urbanos e motivou a migração da indústria, do comércio, serviços e equipamentos para a periferia, supostamente mais conforme aos parâmetros de conforto exigíveis pela vida contemporânea. Porém, a disseminação territorial provocou a dispersão de recursos públicos e dissuadiu os particulares da recuperação do edificado.
Hoje, ensaiam-se políticas para inverter esta tendência e criar novas oportunidades de negócio, vocacionadas para o arrendamento ou para o turismo. Se a recuperação dos sectores urbanos degradados deve respeitar a sua integridade identitária, a renovação deve implicar desejavelmente a reconversão programática, não descurando o seu alcance social. O retorno das intervenções sobre os centros urbanos é fortemente condicionado pelo modelo de gestão municipal, começando pela definição dos usos e critérios de ocupação do solo, plasmados no PDM, até à localização das grandes superfícies comerciais. Assim, discutir o centro obriga à reflexão sobre o todo, no que concerne à complementaridade funcional e à coesão do território.
A salvaguarda dos centros resulta do sábio equilíbrio entre a história e o projecto, da capacidade de renovar a identidade na mudança. Mais do que a postiça musealização, para onde se inclina a maior parte das intervenções, importa considerar o centro como catalizador de um novo paradigma cívico, como um ponto nodal nas redes que a vida contemporânea tece. O preconceito de que a centralidade é exclusiva dos centros históricos, além de inviabilizar os modelos polinucleados, autorizou indescritíveis intervenções de “embelezamento” dos centros nevrálgicos do municipalismo – pelourinhos –, alguns irremediavelmente descaracterizados, e ajudou ao fatalismo das zonas novas. A qualidade arquitectónica escasseia nos subúrbios, mas está igualmente ameaçada nas zonas antigas. Perseverar na mistificação do centro cívico como referente simbólico e condensador cultural conduz à desconsideração dos “não-lugares” periféricos, centros efectivos de vida, e dificulta a percepção da mudança de papel das diversas áreas geográficas.
A cidade, consolidada ou instantânea, é simultaneamente um espaço de encontro e de irradiação que acolhe grupos humanos com distintos, por vezes conflituais, interesses. Mais do que ícones do poder vigente, as novas formas de centralidade são heterogéneas, devem etimular as trocas entre as “coroas” urbanas e fomentar a coexistência da multiplicidade cultural, que não é mais que a inscrição da cidadania, pois a conciliação e a disputa estão na génese da política.
Por: Francisco Paiva