Vale a pena reflectir seriamente sobre a forma como os media estruturam a sua agenda, isto é, a forma como atribuem importância a determinados assuntos e esquecem outros. Tendemos frequentemente a ignorar que aquilo a que chamamos ‘informação’ resulta desse processo social que é o agendamento dos assuntos da actualidade e que inclui, por exemplo, a tendência do alargamento progressivo do tempo atribuído aos noticiários nas televisões portuguesas. Nada disto é novo e os diagnósticos também não faltam, a começar pelos dos próprios jornalistas. Ainda assim, vale sempre a pena reflectir sobre o estado da ‘coisa’ e sobre o modo em que o agendamento da informação contribui para estruturar o espaço público. A escolha do que é notícia e a importância relativa que os media atribuem ao que é notícia são processos sociais cruciais também porque neles se vai definindo a forma como a sociedade se representa a si mesma e confronta, ou evita confrontar, mitos, problemas, desafios, fantasmas. Trata-se, antes de mais, de uma questão de cidadania.
A mediatização das polémicas que, nas últimas semanas, envolveram a Universidade Independente deixou na sombra, quase despercebida e pouco debatida, a polémica dos cartazes colocados, na praça Marquês de Pombal, em Lisboa, pelo partido nacionalista e, em resposta, de forma mimética, pelo gato fedorento. Os media têm destas coisas; quase ignoraram uma questão de cidadania da maior relevância, um caso único de envolvimento autónomo da sociedade na discussão de questões políticas de primeira importância. O que passou despercebido foi que em Portugal, na Páscoa de 2007, quatro humoristas valentes desceram do pedestal da televisão e vieram à praça pública – literalmente à praça pública – participar no debate político para contestar, através da ironia refinada (a arma que tão bem sabem manejar), o cartaz anti-imigração do partido nacionalista. A Câmara Municipal de Lisboa encarregou-se de encerrar a polémica e obrigou a retirar o cartaz do gato fedorento com o pretexto de que não se tratava de um cartaz político.
Antes pelo contrário! É que a política não se reduz aos mecanismos de aquisição, manutenção e luta pelo poder entre partidos políticos, mas estende-se a todas as formas de intervenção na praça pública que têm por objectivo definir o espaço da cidadania e as regras da convivência social. A disputa de ideias, por exemplo. O cartaz do gato fedorento veio provar que a ironia pode ser a arma política mais eficaz na luta contra o esquecimento da história, na desconstrução de mitos e ideias anacrónicas e na defesa da democracia. Ao colocar o seu contra-cartaz mesmo ao lado do do partido nacionalista, ao mimetizá-lo, o gato fedorento lançou uma potente luz crítica, irónica sobre o ‘original’ e as ideias nele expressas e expôs ambos como coisas risíveis. O contra-cartaz do gato fedorento é um daqueles raros objectos do quotidiano com capacidade para nos fazer pensar de forma crítica e impedir que nos alheemos da realidade. No meio de tanto ruído. É pena que já lá não esteja. Numa altura em que o ensino da história parece já não ser suficiente para evitar o ressurgimento de ideias perigosas, injustas e anacrónicas (ou então perdeu a capacidade de formar para a cidadania responsável), a democracia só tem a ganhar com o exercício público deste tipo de ironia valente. Viv’ó gato!
Por: Marcos Farias Ferreira