O caso estudo de Coimbra precisa ser analisado. A Unidade Local de Saúde comporta agora mais de 11 mil funcionários e mais de quinze instituições distantes umas das outras num raio de 70 quilómetros. A realidade da urgência por polos da ULS Coimbra espelha o Portugal moderno.
A percentagem de doentes enviados dos cuidados continuados e lares é exponencial e tende a ocupar 30% dos atendimentos. Isto acontece porque nas instituições de internamento para terapêuticas como fisioterapia, cinesiterapia, terapêutica da fala, não foi permitido haver resposta a situações agudas mesmo que ligeiras. Assim os carros de emergência foram apagados do armamentário. Nestas instituições, doente que tombe, mesmo que não tenha qualquer sintoma, qualquer sinal meníngeo, qualquer alteração do humor, é encaminhado a uma urgência hospitalar consumindo uma ambulância, utilizando recursos do INEM e garantindo que vai utilizar recursos médicos de urgência e não da proximidade.
O número de imigrantes sem médico de família cresceu de forma impactante. Há dezenas de imigrantes que já só chegam para se tratar, pois a sua condição física não antevê trabalho nos próximos meses. Vêm para um país que os acolhe bem, os trata e os acarinha. Há gente riquíssima sentada nas nossas salas de espera, que aqui, neste SNS, encontram as vantagens que na origem ninguém lhes daria. A descoberta que o “Visto Gold” pode ser um belíssimo negócio, se vier da América fazer quimioterapia, ou se sair de Inglaterra para encontrar a hemodiálise, ou se fugir da Índia para resolver a lombalgia da hérnia discal. Há estrangeiros e imigrantes ricos e pobres a descobrir este SNS que os portugueses teimam em criticar.
Há os valores salariais que não conseguem prender os médicos ao SNS pois as ofertas da privada e do estrangeiro rondam valores sete vezes maiores que a base salarial do Serviço Nacional de Saúde. A Europa tem também uma enorme falta de médicos, pois a oferta de desejo de saúde aumentou em todo o lado. Temos falta de ativos para realizar os serviços que se concentraram em menos lugares, com menos recursos. Faltam internamentos, fecharam-se dezenas de pequenos hospitais que ajudavam a conter a demanda.
A filosofia com que pensamos a saúde é também diferente. Hoje, a saúde é como um serviço de supermercado e o utente recorre a várias opiniões antes de decidir. Também é um lugar de ofertas que são extensões do desejo mais do que terapias e diagnósticos. Novos cabelos, outros seios, plastias do abdómen, lipoaspirações, ácido hialurónico nos lábios, botox no rosto.
Acrescentemos as novas opções que vão em favor de ideologias e eleitoralismos. A saúde de trocar de sexo é uma nova saúde. A saúde cirúrgica de corrigir a obesidade é uma não saúde. Há nestas opções risco de efeitos secundários para pessoas que fisicamente eram saudáveis. Repito – saudáveis do ponto de vista biológico – e agora se sujeitam a procedimentos para ser diferente.
A doença do corpo foi a causa do recurso à saúde, mas pode já não ser. Os portugueses estão gravemente doentes da cabeça, com uma ultrapassagem de venda de medicamentos para patologia neuropsíquica muito maior que a terapia da dor. Este povo tem uma percentagem elevada de hipocondríacos, sorumbáticos, taciturnos, azedos, invejosos. Assim surgem os Münchhausen, as somatizações, as fobias, e com tudo isso a desresponsabilização e a fuga ao cuidar dos nossos. Ninguém parece ter vergonha de “abandonar” um familiar numa enfermaria carregada de doentes. Como a ideologia reinante achou que devíamos fechar imensos lugares de atendimento na proximidade fomos ficando sem camas. Internar um doente é um inferno.
A Urgência do CHUC é, pois, isto tudo e depois um erro colossal de gestão. Temos dois polos, sendo que um já devia estar fechado há muito tempo, uma vez que os recursos que lhe estão adstritos são inadequados, geram uma ideia imprecisa de serviço, mas na realidade são uma grotesca realidade de mentiras sucessivas. Doentes amarelos e verdes transitam do polo HUC para serem vistos nos Covões, onde as suas queixas não vão encontrar ortopedia, neurologia, neurocirurgia, cirurgia geral, etc. etc.. O colosso deste crime é que vêm do polo HUC triados ao cabo de esquadra numa carrinha a que chamamos de vassoura. A triagem de Manchester baseia-se sobretudo numa definição de prioridades e encaminhamentos que é diferente em todos os hospitais, pois é dependente dos diretores e do poder das especialidades. No CHUC manda a Medicina Intensiva, a Medicina Interna e a enfermeira diretora.
Estes doentes foram varridos da sala de espera do HUC. Agora estes pobres diabos podem aguardar horas infindas nos Covões por uma equipa médica que pode nem existir. Se tiverem patologia que não seja Medicina Interna ou Medicina Geral podem ter de regressar ao HUC para nova avaliação. O máximo de insensibilidade. No meio destas pessoas há quem recorra porque não tem outra porta onde amainar seu medo, sua dúvida, e estão aqueles que vão descobrir doenças graves que andavam a passear há meses.
Sendo um polo do CHUC, os enfermeiros do bloco operatório passaram a estar a 4 euros por hora, em prevenção a eventuais urgências das enfermarias do Hospital Geral (ou Covões ou HG) ficando fechada a sala de urgências.
Mas o polo HUC é um lugar de insanidade onde se prestam cuidados extraordinários no meio de afrontas, falta de higiene, ausência de humanidade, incapacidade de organização, falta de respeito por profissionais e por doentes. O polo HUC é uma doença que piora quando os hospitais de Aveiro, Leiria, Castelo Branco se enchem de maus prestadores que fazem o mais que podem para não ver doentes. Alguém que diga a verdade! Se fecham as portas de lá venham reforçar estas que rompem da enchente. Aqui, os meninos doutores fazem-se clínicos à força. Pouco faz o menino, mas tolo é quem não aproveita. E eles trabalham, pedem ajuda, colapsam, alguns choram, outros dormem mal quando sabem o que os espera.
Três cirurgiões, num espaço aberto, dantesco, tentam encontrar doentes e prestar cuidados. Mas a certa altura a mente falha, a determinado momento o corpo cansa desiste.
Outra decisão extraordinária é o número de auxiliares e de pessoal de limpeza que responde à quantidade brutal de doentes que chega ao polo HUC. São dezenas centenas de inscrições, dezenas de macas, milhares de exames complementares por dia, um corrupio que nem nas estações de comboio, nas feiras municipais, ou nos festivais de Verão. Acham que chegam três auxiliares para dar banhos, acompanhar às enfermarias, fazer camas, acompanhar aos exames complementares. Há momentos que chegam três macas por cada dois minutos, e partem com dificuldade umas três por hora. O que se ganha em transportes de doentes deve ser uma barbaridade neste país.
Faz dias, que uma maca colocada junto à mesa do meu computador largou os vómitos no meu espaço de trabalho. Pobre doente, pobre de mim, pobre do SNS.
O que se espera dos médicos é que respondam de modo preciso após observação dos doentes, análise dos exames complementares e por fim a terapêutica que foi aquilo para que os treinaram e que gostam de fazer. A Urgência não é o lugar de melhor resposta à patologia. O doente deve fazer um percurso de avaliação, sistematização e encaminhamento para uma terapêutica de risco quase zero. Neste lugar o erro aumenta exponencialmente. A pressão de falta de camas para encaminhar, falta de espaço para conter mais gente, condiciona decisões de alto risco.
Então o que está errado? A falta de prevenção. A falta de dirigentes que decidem sem medo do que os outros pensam. A falta de trabalho para evitar os acidentes rodoviários. A falta de políticas mais agrestes quanto ao álcool e telemóvel na condução. A falta de coragem contra a agroindústria alimentar. A falta de políticas de educação para a saúde nas escolas. A falta de política desportiva. Uma reorganização dos cuidados continuados e paliativos, dando mais recursos aos que já existem, e evitando o recurso constante aos Hospitais. Educação contra o encarniçamento terapêutico. Melhores orientações da DGS para situações como o trauma do idoso. Criar políticas de avaliação dos resultados da utilização massiva de fármacos anticoagulantes. Rever orientações para um envelhecimento saudável. Melhorar o atendimento de proximidade pondo todas as hipóteses na mesa. O dinheiro atrás do doente em liberdade de escolha deste na utilização de todos os recursos possíveis – públicos e privados.
* Médico