Dando início a uma série de digressões acerca de algumas expressões que utilizamos correntemente no luso vernáculo, começo hoje por essa pérola que dá pelo nome: “fulano não é parvo nenhum!”.
Os mais incautos julgarão que o epíteto designa alguém que se distinguiu numa área determinada da investigação científica, ou que se notabilizou pela filantropia, ou que é um grande pensador, ou que tem uma moral impoluta, ou que paga escrupulosamente os seus impostos, ou que dinamiza determinada colectividade ou determinado jornal, ou cuja dimensão cívica é assinalável, ou que dispensa maior tempo à família do que o habitual, ou que se distinguiu em alguma disciplina artística, ou que tem uma participação activa em defesa do meio ambiente, ou que é um profissional exemplar na sua área, ou cujo saber e curiosidade sobressaem pela vastidão…
Pois estão redondamente enganados. Em Portugal, dizer de alguém que “não é parvo nenhum” significa simplesmente que se escusou airosamente às obrigações fiscais, que arranjou um emprego assaz pretendido, que entrou em determinado local sem pagar, que tem uma isençãozinha que lhe dá direito a ser diferente de todos os outros, que tendo sido presidente de certa colectividade, foi admitido em lugar de destaque numa instituição de ensino sem dispor de qualquer qualificação para o efeito, que conseguiu enganar tudo e todos, colocando o seu dinheirinho a coberto dos credores, que sabe sempre primeiro que todos quando sobre si recai uma ordem judicial, que conseguiu que a sua equipa ganhasse a taça à margem do mérito desportivo, que não está para perder tempo a dar prioridade aos peões nas passadeiras, que acabou por construir mais um andar na nova moradia, cuja falta de licença foi suprida da forma expedita que se imagina, que é um incompetente mas não deixa de ser promovido por isso…
Em resumo, a expressão justifica, deifica, “normaliza” o chico-espertismo, essa grande instituição nacional. Tornando possível uma tolerância razoavelmente consensual perante o arranjinho duvidoso, a finta obscura, o “faz-de-conta” espertalhaço. Democratizando-os, coloca-os ao alcance de todos, de tal modo que qualquer um pode ascender a “parvo nenhum”. Mas nem por isso os que não conseguem lá chegar se conformam com o estatuto de “nenhuns parvos”. Era o que faltava! Precisamente porque só um parvo nega essa qualidade a outro! Só um parvo reconhecerá que um “parvo nenhum” é possuidor de um dom que ele não tenha, ou de uma qualidade especial que ele não possa desenvolver, ou de uma oportunidade de que não possa tirar partido. Por essa razão, pagam adiantado, nomeando os meros espertalhões como “parvos nenhuns”. Mas fazem-no por exclusão de partes, não lhes concedendo um destaque inconveniente e imerecido. É que a inveja ainda pesa… Todavia, publicamente gabam-lhes profusamente a perícia. Para deles se sentirem próximos, cúmplices, familiares. Repare-se pois que os felizardos passam a ser “parvos nenhuns” e não “parvos alguns”. Dessa forma, a mediania fica salvaguardada. Quando chegar a hora da “promoção”, a condescendência que se “deu” de avanço irá ser devidamente recompensada. Ficando garantidas a invisibilidade e a impunidade.
Por outro lado, cada “nenhum parvo” que, podendo, um dia há-de ser um “parvo nenhum”, acaba por reconhecer, no seu íntimo, que a façanha resulta de um cálculo feliz ou de uma mediania esforçada. Mas como a risibilidade desses factores é transformada em qualidade insuspeita, nunca haverá o perigo de, sendo eu ou o leitor o próximo “parvo nenhum”, passar alguém a ser “algum parvo”.
Por: António Godinho