Um dos casos que têm dominado a agenda político-partidária em Portugal é, sem dúvida, o do tratamento recebido pelas gémeas no Hospital de Santa Maria. Aceito e compreendo que um pai ou uma mãe tudo façam pelo tratamento adequado e necessário os seus filhos. Quem não o faria? Outra coisa bem diferente são os procedimentos relacionados com este caso, o comportamento de quem nele se envolveu, e o estatuto social e político das personagens envolvidas.
Não vou discutir aqui a velhinha questão do custo exorbitante dos medicamentos ou dos lucros por vezes obscenos da indústria farmacêutica. A mesma indústria que apenas investe 2% desses lucros em investigação e cujo poder na sombra faz com que nenhum ministro da Saúde em Portugal possa ser nomeado contra o seu veto oculto.
Admito que as gémeas tivessem todo o direito a receber o remédio em causa, aparte a questão da sua eficácia, muito técnica e especializada para o meu discernimento. Os procedimentos a montante da administração do remédio é que já me merecem toda a repulsa. Desde logo, a fulminante obtenção super-rápida, contra aquilo que é hábito, da nacionalidade portuguesa por parte das gémeas. Num país onde imperam o inferno e a inércia administrativa, esse pormenor diz muita coisa…
Depois, a envolvência do Presidente da República. No mecanismo da cunha, há coisas que não precisam de ser ditas ou pedidas. Pode até tudo parecer muito automático e desprendido, igual a mil e outras coisas idênticas. Mas se há coisa em que os portugueses são, há séculos, especialistas mundiais, é em cunhas. E não há português que não perceba que se o filho de Marcelo não fosse filho de quem é as gémeas nunca teriam tido acesso àquele tratamento em tempo tão recorde. O resto, os tecnicismos e legalismos da máquina administrativa, as explicações, as desculpas, etc., valem tanto como a riqueza no inferno. Assim mesmo, simples como dois mais dois serem quatro, na base 10, obviamente!
O que assusta não é a cunha em si. O que assusta é os portugueses terem tido acesso a um caso que exemplifica na perfeição que a cunha é tão prevalente e oleada nas mais altas esferas do Estado que nem sequer precisa de parecer aquilo que é. Nem sequer é preciso pedir o favor, pode tudo ser tratado como se nada fosse. A máquina já desliza como que por instinto. Basta que as coisas vão de A para B, e que toda a gente saiba qual é a letra que identifica cada ponto do caminho.
A cerejinha no cimo do bolo é a constituição de mais uma comissão de inquérito para lidar com tudo isto. Já sabemos que são as raposas que gerem o galinheiro em que vivemos. Também já percebemos que pouca diferença há em que sejam castanhas, cinzentas, brancas ou ruivas. Mas pretender-se que uma comissão de raposas vá avaliar com isenção um caso em que as galinhas foram impunemente depenadas à vista de todos, e mais ainda, julgar-se que isso vai permitir saber algum dia o que efetivamente se passou ou trazer-nos a esperança de que tudo mude, só me leva a crer que os otários que acreditem num sistema destes merecem tudo aquilo de mau que lhes acontece.
Claro que já apareceram os alçapões e os tecnicismos legais que vão permitir que pareça que se quer apurar a verdade, mas que manterão tudo na mesma. Por exemplo, o famigerado segredo de justiça ou o direito ao silêncio. O circo cumpre a sua função. Entre a chula de certos dançarinos e a caluda de outros, prevalece, para o comum dos mortais, a ideia de um espetáculo triste e ultrajante, humilhante até daquilo que deveria ser a dignidade de uma nação.
Afogados em desigualdade, injustiça, iniquidade, corrupção e sofrimento, os portugueses assistem, muitos deles já sem espanto, à encenação de um absurdo processo legitimador do sistema que lhes trás todas essas maleitas. Como já foi salientado por vários comentadores, as comissões de inquérito são o pelourinho da inquisição. Como a Justiça não funciona, fazem-se espetáculos públicos destes, autênticas festas da decadência. Mas entre a suspeita e a condenação antecipada, entre o Brasil e Portugal, dois países sem tradição democrática na Justiça, fica sempre o caminho para o “chico espertismo” se safar. Se a bíblia nos diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco duma agulha do que um rico entrar no reino dos céus, eu digo-vos que em Portugal os camelos de que falamos passam sempre por onde querem! Só nos resta escolher depois entre o insulto e a vergonha!
A raposa, a cunha, o insulto e a vergonha
“Não vou discutir aqui a velhinha questão do custo exorbitante dos medicamentos ou dos lucros por vezes obscenos da indústria farmacêutica. A mesma indústria que apenas investe 2% desses lucros em investigação e cujo poder na sombra faz com que nenhum ministro da Saúde em Portugal possa ser nomeado contra o seu veto oculto.”