Quando for votar, no domingo, fá-lo-ei pela igualdade, pela dignidade e pela vida. E sobretudo para mudar uma lei e uma cultura que atiram para o sótão da consciência social o gravíssimo problema do aborto clandestino. Sou pela vida porque é verdade que nenhuma é demais e, além disso, não se repete na história da humanidade; mas recuso-me a aceitar a naturalidade com que muitos lidam com aquele problema, optando por ignorá-lo e julgando que nada têm que ver com ele, que lhes é intrinsecamente exterior e alheio. Recuso-me a aceitar que se grite furiosamente pela vida para, ao mesmo tempo, se preferir esquecer que o aborto ilegal é uma realidade na sociedade que somos e vamos fazendo. Ainda assim, muitos preferem conservar a ficção e esquecer a clandestinidade, conscientes todavia de que a lei actual não lhes põe cobro. Recuso-me a aceitar que a sociedade se divide entre os moralmente débeis e os moralmente inabaláveis; a aceitar que o código penal recolha essa distinção e que julgue, com o distanciamento da lei, um acto que implica o maior dos sofrimentos, que é um atentado à saúde pública e que põe em causa a vida. Recuso-me a aceitar que se opte por esquecer o artigo 13 da Constituição (que prega a igualdade perante a lei) para não se ter de confrontar a realidade de que só as mulheres mais fragilidades enfrentam a criminalização e os perigos para a saúde (outras há que se vão para onde a lei é outra e os cuidados de saúde adequados). Recuso-me a aceitar que se queira apaziguar o dilema defendendo, na prática, a despenalização mas optando por preservar a ficção da lei actual em nome de uma abstracta ‘fortaleza moral’. E que se ignore que é na clandestinidade que a mulher que interrompe a gravidez se vê privada de qualquer tipo de opção e aconselhamento. Vale a pena dizer que a ‘fortaleza moral’ tem frequentemente destas coisas; é impassível perante a realidade, não quer saber de como vivem os valores no ‘aqui’ e ‘agora’ das gentes e das vidas concretas, nem se a sua proclamação abstracta os contradiz e fere profundamente. Estou convencido de que preservar e alimentar a clandestinidade do aborto é um dos maiores atentados à vida, à saúde pública e aos valores de uma sociedade que quero autêntica, o que só expressa a esperança de que consiga encarar de frente, sem subterfúgios nem evasivas, os dilemas e as contingências inerentes à convivência social. E no caso concreto deste referendo, a abstenção é mais um subterfúgio, uma evasiva.
Por: Marcos Farias Ferreira