É complexa e muito delicada a questão da interrupção voluntária da gravidez. Porque envolve a própria questão da vida humana. Ou da gestação da vida humana. Se nos lembrarmos que há quem defenda que as relações sexuais têm como única razão de ser a procriação – recordo a hilariante poesia, lida em plenário da Assembleia da República, de Natália Correia sobre um famoso deputado – poderemos imaginar quão difícil e delicada é a questão da génese da vida humana. Da determinação do momento em que é possível considerar que o processo de gestação deu origem a uma vida humana. Derivando desta decisão consequências radicais para uma posição sobre a interrupção voluntária da gravidez: crime ou não. Trata-se, todavia, de uma questão de difícil resolução, uma vez que não é possível decidir tendo unicamente como base uma conclusão sobre o processo de emergência da «consciência de si». Até porque, numa simetria invertida, muitos defendem a legitimidade da eutanásia, apesar de o doente ter plena consciência de si, mas não tendo qualquer controlo sobre o seu corpo condenado e sofredor. Mesmo sem emergência de consciência explícita de si e encontrando-se o corpo em mero processo de gestação inicial, não são inatacáveis os argumentos a favor da interrupção voluntária da gravidez se não se verificarem situações de evidente radicalidade. Por exemplo, provável morte do feto e da mãe.
Por via de considerações filosóficas, a demonstração a favor ou contra a IVG é sempre problemática. Restam, pois, considerações pragmáticas. É sensato considerar que nenhuma mãe deseja praticar a IVG sem um sofrimento profundo, quer por razões instintuais de apego à vida e à sobrevivência quer por espontânea afectividade para o ser que germina quer, ainda, pela dor e pelo perigo que antevê no acto. Os seres vivos funcionam assim. A decisão de proceder à IVG é tomada com intervenção da razão, num ambiente pessoal onde, todavia, se mantêm em forte tensão as motivações de natureza instintual, sobre factores – da mais variada natureza, desde uma eventual violação ou de graves malformações até ao perigo de vida – que podem justificar uma decisão tão drástica. Por outro lado, tal como se verifica, do ponto de vista de determinadas convicções religiosas, uma posição rígida e dogmática em torno do conceito de vida, também é verdade que existe uma mundividência de senso-comum, que funciona com os banais instrumentos cognitivos usados na vida quotidiana, que assume a gestação, nos seus primeiros momentos, numa óptica não absoluta, ou seja, como processo conducente a formação, ulterior, de vida humana. Ou seja, que considera a vida como resultado de um processo evolutivo de humanização, a partir de incipientes estados orgânicos. De algum modo, é algo parecido a isto que está contido na formulação filosófica existencialista «a existência precede a essência» ou na formulação de Gramsci sobre a construção do homem: o homem é aquilo em que se torna. Ou seja, é resultado do seu próprio processo de autoprodução. É claro que a questão que tratamos tem uma dimensão mais funda, uma vez que vai até à raiz da existência orgânica e ao fundamento ontológico da existência humana. E por isso é tão difícil. Só que também a reflexão sobre a produção da existência pelos humanos pode ajudar a esclarecer a raiz profunda e orgânica da vida humana. No fundo, a opção por uma posição mais radical só pode ser de natureza religiosa ou filosófica, uma vez que é o próprio conceito de vida que está em jogo, numa óptica metacientífica.
Mas também é verdade que ao assunto em causa há que juntar dimensões de vida pragmáticas, uma vez que elas integram, com dignidade ontológica, o próprio conceito de vida. A descriminalização da IVG até às dez semanas – que é o que está em causa – evita de ciência certa essa chaga do «aborto clandestino», essa florescente economia submersa que tem tanto de real como de sórdido e de perigoso para a saúde de quem a ela se submete, com os efeitos para a saúde pública que são conhecidos.
Ao dizer que voto Sim pela despenalização da IVG até às dez semanas e à possibilidade de o fazer em estabelecimento legalmente autorizado para o efeito, digo-o no pressuposto de que as cidadãs que se obrigam a fazê-lo estão em sofrimento profundo, mas com a clarividência racional de que o fazem em nome de razões superiores e em condições socialmente aceitáveis.
Por: João de Almeida Santos