Por-amor-de-deus

Escrito por Fidélia Pissarra

“Nunca um por-amor-de-deus substitui um chiu-que-quem sabe-e-manda-sou-eu, o que faz com que não nos passe pela cabeça que o por-amor-de-deus saia da boca do polícia que nos multa, por desrespeitarmos o Código da Estrada, e não da nossa.”

Todos nós já passámos pela posição, extrema, de não conseguirmos convencer alguém de que algo não precisa de mais explicações, além da evidência intrínseca, para ser aceite como válido. Neste particular, quem nunca sentiu o desespero de não conseguir que o outro visse o óbvio, que aceitasse os factos por si próprios, bem pode atirar a primeira pedra. À falta de quem a atire, bem podemos assumir que já aconteceu a todos, por exemplo, estar a sentir cair-lhe em cima a chuva, enquanto o do lado afirma, peremptoriamente, que não está a chover.
Perante aquele trítono que costuma separar a perplexidade do cansaço, à falta de argumentos face a quem da realidade tem perceção tão distinta da nossa, a maioria das pessoas desistirá das conversas impossíveis lançando, tempestuosamente, um por-amor-de-deus com que se costuma livrar de burros e casmurros. O que, como os nossos pais e professores bem nos ensinaram, só não sucederá com quem, pura e simplesmente, tem poder para vencer os outros mandando-os calar.
Nunca um por-amor-de-deus substitui um chiu-que-quem sabe-e-manda-sou-eu, o que faz com que não nos passe pela cabeça que o por-amor-de-deus saia da boca do polícia que nos multa, por desrespeitarmos o Código da Estrada, e não da nossa. Bem se poderá, portanto, dar como provado que um por-amor-de-deus, quando não significa impotência frente à inaptidão do interlocutor para entender e aceitar o óbvio, por parte de quem o expressa, significa a própria inaptidão para entender os argumentos do outro, por parte de quem o ouve. Prova esta que não augurará nada de bom para quem, nos últimos dias, tem assistido a tantos por-amor-de-deus vindos de gente, não só tão importante como o presidente dos Estados Unidos da América, mas também de gente tão importante como o presidente da Assembleia da República. Contudo, embora no primeiro caso dê para perceber que perante Putin, Biden se sinta impotente, já o mesmo não acontece relativamente à impotência, ou à autoridade, evidenciada pelos por-amor-de-deus de José Pedro Aguiar-Branco nas sessões parlamentares.
Tratando-se da segunda figura de Estado, de quem representa a Assembleia da República, dirige e coordena os trabalhos e exerce autoridade sobre todos os funcionários e agentes e sobre as forças de segurança postas ao serviço da Assembleia, a primeira hipótese, impotência para exercer eficazmente essas funções todas, deve deixar-nos tão preocupados como a segunda, a ausência de ética, inaptidão política e democrática de quem o ouve. As duas hipóteses, mais do que deixarem-nos em sobressalto, devem assustar-nos. Ainda que não nos assustemos, quando à incapacidade do líder de uma bancada parlamentar para respeitar o Regimento da Assembleia da República, podemos juntar a grosseria do seu estalar de dedos para chamar a atenção do Presidente da Assembleia da República, como se de chamar a atenção de um empregado de mesa, a quem se quer pedir um café, se tratasse, pelo menos, que nos sobressaltemos. Pois, mais do que da incapacidade de uns e da impotência de outros, por-amor-de-deus, é da dignidade das nossas instituições e dos nossos representantes que se trata. E não quereremos, de todo, vê-los tratados como crianças irrequietas e mal-educadas que, através da condescendência, bacoca e desapegada, dispensada por quem nem sequer quer saber nada delas, são tratadas como entes irresponsáveis a quem não vale a pena dispensar muita atenção.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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