O Natal dos meus sonhos

Escrito por Fidélia Pissarra

“Nas montras, as personagens do Natal de sonho do artista continuavam imóveis, absortas e tão ignoradas como os sonhos dos que, espalhados pelo chão, dormem encostados a elas.”

A composição era do mais inocente e bonito que se consiga imaginar. As quatro figuras dispostas ao longo do retângulo da montra pretendem representar o Natal dos sonhos do artista que concebeu a composição. O chapéu “à toureira”, bordejado por longas franjas, iguais às das mantilhas sevilhanas, não deixavam dúvidas sobre que saia caiam as riscas coloridas desenhadas pelas fitas de cetim: aquele manequim evocava as meninas de Velázquez. À frente da “menina”, um pequeno boneco de trapos, meio palhaço, meio Arlequim, deixava-nos indecisos quanto ao género. Coisa impossível de acontecer, essa de nos confundir, com a sua companheira de linha da frente. Aquela boneca, feita de pano desde as unhas dos pés até à ponta dos cabelos, só podia ser a Emília que, no sítio do pica pau amarelo, a Tia Nastácia fez para a menina Narizinho.
Obviamente que a verdadeira função de qualquer uma das três personagens passava mais por nos levar a adquirir as roupas exibidas pelo quarto manequim do que por nos contar, o que quer que fosse, sobre um Natal de sonhos, mas não é suposto que alguém disso se tivesse apercebido ao afastar-se da vitrine para melhor a apreciar. Mais a mais, porque ainda não eram oito da noite e já os lojistas, os empregados de café e os seguranças do parque se apressavam a cerrar portas, a prender cadeiras de esplanada com correntes metálicas às paredes e a fechar portões. Aparentemente, mais preocupados com os que os rodeavam do que concentrados nos mecanismos que manuseavam, valiam-lhes os muitos fechos e encerramentos para que nenhum trinco ou bloqueio fosse descurado pela forma automática com que se moviam. Mais do que animá-los, o excesso de brilho nas iluminações natalícias parecia acossá-los e fechavam tudo com a determinação de quem se quer livrar da angústia, de ser perseguido pelo espírito das cores luminosas, o mais rapidamente possível.
Ao lado da montra sob as arcadas, absorto, um indigente protegia os seus pertences com todo o peso da cadeira de rodas como se a sua vida dependesse disso. De repente, numa magia anti natalícia, pequenas multidões, surgidas de cantos que a luz nunca atinge, deram em imitá-lo enchendo a avenida de uma vida completamente diferente daquela que acabava de abandoná-la deixando espalhado pelo chão o lixo que a esta haveria de servir. De resto, à exceção das montras das joalharias despidas para a noite, nada mudara. Os prédios continuavam iguais aos da luz do dia, as luzes brilhavam da mesma maneira desde que as tinham acendido e as montras, que não costumavam exibir jóias caras, continuaram a tentar vender um Natal de sonho à medida de cada um ao ritmo dos comboios que sobrevoavam o sono dos sem-abrigo instalados sob o túnel para se proteger da chuva e das mangueiras que haveriam de vir lavar as ruas, as almas e os natais todos que nunca cabem na noite de 24 para 25 de dezembro.
Nas montras, as personagens do Natal de sonho do artista continuavam imóveis, absortas e tão ignoradas como os sonhos dos que, espalhados pelo chão, dormem encostados a elas.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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