“Liberdade”

Escrito por Fidélia Pissarra

“Tudo o que não nos preocupa tende a estar bem e o que parecia estar bem, bem estaria. E, quando assim não era, sempre nos restava o velho “a liberdade de uns, termina onde começa a dos outros” para passar a ser.”

A 26 de abril de 1974, eu e a minha amiga de escola conversávamos sobre a atualidade mais recente: Liberdade. Depois de concordarmos em que o “golpe de Estado” não tinha passado por Marcelo, o Caetano, ter levado qualquer facada, no sentido literal da expressão, a minha amiga concluía que, caso nos apetecesse, podíamos ir ao jardim público arrancar um ramo de flores para oferecer às nossas mães sem que a polícia nos prendesse. Talvez porque nunca me lembrara de dar flores a quem quer que fosse e a ideia de assaltar os canteiros dos jardins públicos também não me seduzir por aí além, a ideia pareceu-me uma tolice pegada. Mas a vergonha de reconhecer que nunca o nobre ato de oferecer flores e, ainda por cima, à mãe, me tinha ocorrido, impediu-me de concordar ou discordar e preferi mudar de assunto, pois, ao que parecia, com aquela liberdade, naquele momento, não achava forma de me entender. Então, ainda não sabia porque, em boa verdade, não tinha como saber, que provavelmente a liberdade não seria assim tão definida e reconhecível por todos como nos queriam fazer crer. Pormenor com que, de resto, durante as décadas seguintes não voltei a preocupar-me. O que acabou por ser bom sinal. Tudo o que não nos preocupa tende a estar bem e o que parecia estar bem, bem estaria. E, quando assim não era, sempre nos restava o velho “a liberdade de uns, termina onde começa a dos outros” para passar a ser.
Bem poderia ter sido a proximidade dos festejos dos cinquenta anos da efeméride revolucionária a provocar-me a recordação de conversa tão remota, mas não foi. Aqui há dias, alguém com quem também partilhei salas de aula suficientes para lhe reconhecer o despótico feitio, apareceu-me à frente como membro fundador de um movimento qualquer de “liberdade”. Coisa que, obviamente, me espantou mais por a saber contra a generalidade das liberdades de Abril, do que por andar a ajudar a fundar “movimentos”. Fã da ordem e da minudência das coisas vulgares, nunca a rapariga conseguiu conviver com a pluralidade de opiniões, práticas ou religiões. Aquela foi sempre um ponto negro na alvura da geografia social, um ponto final nas relações não lucrativas. Sem conseguir lembrar-me de que tenha sido algo, além das eternas reticências, na gramática da liberdade, restou-me perguntar de que “liberdade” tratará tal movimento de que é cofundadora. Depois lembrei-me das suas flores, do nosso jardim e da possibilidade de arrancar as cujas ao dito sem se ser punido por isso, e pude vislumbrar a resposta. Tal movimento, o da “liberdade” dela, terá mais a ver com a expansão da liberdade de alguns a troco da contração da de todos do que com outra coisa qualquer.
Passados cinquenta anos sobre o dia da Liberdade, os que querem ser livres para acabar com a liberdade dos, apenas isso, perderam a vergonha e emergem com a força que a contínua descredibilização dos partidos políticos e das instituições (sustentáculos da democracia), por parte de quem deveria defender a sua existência, lhes confere.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

Leave a Reply