Na pequena loja de bairro, sob a pressão do olhar oblíquo e desconfiado do merceeiro, uma cliente observava longamente os rótulos e os preços dos produtos das prateleiras. Junto à porta, em frente da caixa registadora, outra cliente aguardava o fim daquele jogo de vagares para poder pagar o que queria comprar e ir à sua vida. Embora todos os gestos se fossem desalentando, à medida que o tempo passava, significando que a pressa é um conceito abstrato, nenhum dos três deu mostras de impaciência até à chegada de um novo cliente. O rapaz, recém-chegado, era novo demais para não estar na escola àquela hora e espevitado demais para aceitar não ser prontamente atendido. Como se isso não chegasse, na hora de pagar, conseguiu espevitar a curiosidade dos restantes ao querer fazê-lo com um cartão que nunca ninguém ali vira. O olhar oblíquo e desconfiado do merceeiro acentuou-se, a hesitação demorada da freguesa junto às prateleiras fez uma pausa e a que aguardava junto à caixa registadora esqueceu-se do que estava a fazer. Dos quatro, apenas o rapaz, que devia estar na escola, fazia o que ali tinha ido fazer, compras. Ignorando o cesto das compras do jovem, os olhares assaz curiosos dos mais antigos estacionaram no terminal de pagamento automático porque, a cada tentativa de pagamento, a maquineta dava em apitar e retornar “erro 0000000000”.
Descoroçoado, o rapaz desistiu das compras e o merceeiro indignou-se com a perda de tempo a que fora sujeito. Sem perceber porque é que o cartão de pagamento não funcionara, pegou no cesto das compras do outro e foi devolver os produtos aos expositores: um quilo de arroz, meio quilo de massa, uma alheira, um pedaço de toucinho fumado, um pacote de bolachas e dois litros de leite. Enquanto o fazia, maldizia-se por ter de o fazer e, esquecendo rapaz e cartão, as freguesas desataram a conversar, uma com a outra, sobre si próprias.
Na casa do rapaz, indiferente aos seus argumentos, já a mãe o responsabilizava e repreendia por não ter levado o que lhe encomendara. A cada “porquê” da progenitora, respondia o jovem com um “mas” e estiveram naquilo até chegarem à conclusão de que mais valera que o garoto não tivesse faltado às aulas só para evitar a vergonha, à mãe, de pagar a mercearia com um cartão de apoio a pessoas carenciadas que só permite comprar bens alimentares. Mais a mais, ele até a tinha alertado para o facto de as batatas fritas de pacote serem mais saudáveis do que as alheiras e o toucinho. A mãe é que não quis acreditar, por pensar que ele só queria comprar alimentos de que gostava, acabando ambos por se remeter ao silêncio. Eis quando o vizinho de cima, que tão de perto acompanhara a discussão, sem saber bem porquê deu consigo a recordar Laurent Schwartz para, finalmente, compreender e concordar com Win Wenders: «A realidade é a cores» mas tudo seria muito mais fácil se fosse a «preto e branco».
Cenas dos próximos episódios?
“O rapaz, recém-chegado, era novo demais para não estar na escola àquela hora e espevitado demais para aceitar não ser prontamente atendido.”