Os barrocos e o intenso giestal dificultavam a progressão do cortejo pela serra. Arreliado, o rei mandou os de dois olhos, como ele, recuar e os de um e três olhos avançar. Felizes, os de dois olhos nunca mais quiseram saber dos outros e foram à sua vida.
Chegados lá em cima, sem ter para onde se virar, os que só tinham um olho revezavam-se a partir pedra e os de três olhos a cogitar sobre como furtar as pedras partidas. Claro que depois de os convencerem da necessidade de construir uma torre para se protegerem das investidas das bestas que os queriam comer, os de três olhos nem sequer precisaram de roubar coisa nenhuma, porque os outros lhas traziam. Quando, concluída a torre, os de três olhos continuaram a pedir pedras, os de um olho começaram a desconfiar que a dita serviria mais para os controlar, do que para os proteger do que quer que fosse e, não sem antes rogarem uma praga a todos os que a partir daí subissem à torre, abalaram. Desfeita considerada obscena e infame pelos que ficaram e nunca mais conseguiram sair desta, e doutras considerações semelhantes. em que se enredaram desde então.
Sem gente que lhes partisse pedra e sem qualquer vontade de a partirem eles, os de três olhos, desconhecendo que por via da praga dos outros o que viam do alto da torre nunca era de fiar, além da do controlo, começaram a pensar nela também como único meio de sobrevivência. Aos que não fossem dali e tivessem três olhos, obrigariam a pagar passagem, aos que tivessem um olho havia que os convencer a ficar. Mesmo, sem grande sucesso na empreitada, lá foram convencendo um ou outro incauto até conseguirem formar uma procissão toda jeitosa e disponível para subir à torre a cada contrariedade. Claro que os de um olho só que se deixaram convencer continuavam a ver metade de uma coisa, enquanto os de três olhos viam o triplo de três coisas. Ainda assim, o maior dos dilemas passava sempre mais por tomarem por real tudo o que dali viam e não viam, do que pela sua medida. Mas, afinal, que viam eles? Pois bem, viam miniaturas de Fernando Pessoa em todos quantos por ali versejassem, embriões da Paula Rego nos que rabiscavam e o Souto Moura voltava a ser parido por quem erigisse um qualquer barracão. Tudo culpa dos que não sabiam apreciar o talento nativo que constantemente ali despontava, já se vê. Pois, se fosse pelos que olhavam do alto da torre, a cidade tinha chegado mais longe do que qualquer outra à face da terra.
Não que tamanha megalomania mereça mais reparo do que outra mania qualquer, mas lá que os doidinhos da torre, do hospital, do hotel, do centro histórico, das escolas e outras que tais, mereciam ter ouvido das boas, mereciam. Talvez assim os de três olhos que enxotaram os de um se tivessem dado ao trabalho de descer à terra e reparar nas amolgadelas das casas, nas ruas doentes e nas estradas que tão mal continuam a tecer a cidade e começado a partir a própria pedra.
Os homens da torre (de Menagem)
“Quando, concluída a torre, os de três olhos continuaram a pedir pedras, os de um olho começaram a desconfiar que a dita serviria mais para os controlar, do que para os proteger do que quer que fosse e, não sem antes rogarem uma praga a todos os que a partir daí subissem à torre, abalaram.”