No dia 8 de outubro de 1998 José Saramago tornou-se o primeiro e, todavia, único Prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa. Duas décadas depois, e para além das muitas iniciativas que, um pouco por todo o lado, recordam aquele momento histórico, cabe-nos, também, elevar esse extraordinário momento e encontrar a sua relação, profícua, com a nossa memória e com a sua passagem pela região. Porque se o momento foi histórico para a literatura lusófona e para o escritor, também o foi para aqueles que gostamos de o ler. (Há 20 anos, precisamente, tive oportunidade, então na Rádio F, de promover uma tertúlia antológica com António José Dias de Almeida e José Manuel Mota da Romana sobre a obra de Saramago – era o nosso tributo pelo momento histórico).
«Vir a Cidadelhe e não ver o Pálio era como ir a Roma e não ver o Papa!» disse José Saramago a O INTERIOR, em outubro de 2003, em mais uma das suas visitas àquela aldeia do concelho de Pinhel. Então, o Prémio Nobel da Literatura apadrinhou o lançamento de um vinho com a sua assinatura: “O Cidadão de Cidadelhe” (infelizmente com muito Rufete e pouca Touriga, o néctar desapareceu e as 1.333 garrafas não tiveram a merecida sequência nem a eternidade esperada. Lá voltaremos, asseguro-vos…). Mas se o Pálio do “Calcanhar do Mundo”, guardado religiosamente pela população, foi eternizado pela mão de Saramago na sua “Viagem a Portugal”, a aldeia «quase na ponta de um bico rochoso entalado entre os dois rios (o Côa e o Massueime)», foram muitos os outros momento que o Nobel celebrou na região ou sobre ela escreveu (poucos meses depois de receber o Prémio Nobel, tive oportunidade de o acompanhar entre Marialva e Cidadelhe e perceber o entusiasmo que colocava na interpretação de cada pedra, de cada rosto, de cada momento vivido entre as gentes destas aldeias). E se chegamos a Cidadelhe pela mão de Saramago e se o “Cidadão de Cidadelhe” há-de voltar mais encorpado, tinto ou branco, é o elefante Salomão que percorre toda a região como um guia ilustre que, mercê dos caprichos reais, ganha forças na Gardunha e, como se seguisse as instruções de Petrus Guterri, sobe de Castelo Novo para Belmonte de onde a “Viagem do Elefante” nos leva para a paisagem «intemporal» de Sortelha e, seguindo pelo mais inóspito dos caminhos, para Cidadelhe. É no “calcanhar do mundo” que Salomão saboreia a viçosa gastronomia com que se retempera para atravessar a Europa rumo à corte do Arquiduque Maximiliano da Áustria, não sem antes nos guiar pelas «vistas» de Castelo Rodrigo.
Saramago pode ter-se retirado para Lanzarote e deixado a Azinhaga para trás, mas a sua obra, a sua genialidade, fica para sempre no nosso imaginário e as nossas aldeias e vilas, mesmo que recônditas para muitos, fazem parte do roteiro de afetos dos leitores do Nobel português. Vinte anos depois, e enquanto celebramos aquele momento Nobel, devemos elevar o nome de um dos maiores das nossas letras e que foi um peregrino e difusor destas terras da Beira Serra. O vinho “Cidadão de Cidadelhe” não se impôs como embaixador «de Cidadelhe e do concelho», como então reivindicava o autarca António Ruas, mas Saramago foi, é e será sempre um grande embaixador de Cidadelhe, Castelo Rodrigo, Marialva, Belmonte, Sortela, Castelo Novo…