Descendente de famílias que desempenharam papéis relevantes na vida guardense de finais do séc. XIX até meados do séc. XX, M.ª João Lopo de Carvalho abraçou o projeto de elaborar uma biografia do bisavô, o Dr. Manoel Caroça (1871-1945), dentista de formação e empresário investidor que se distinguiu pelo seu percurso de “self-made man”. O bisavô servirá de fio condutor para dar a conhecer os vários ramos da família da biógrafa-romancista e a “success story” melancólica desse provinciano que, ousando pensar em grande, se tornou cidadão do mundo, dono de um império milionário, a partir de Lisboa.
Graças ao seu domínio das técnicas de “storytelling”, a escritora compôs uma sugestiva saga familiar associada ao sentimento dinástico que não deixa de cultivar. Assumindo tratar-se de uma biografia romanceada, faz uso de recursos ficcionais, como o ponto de vista omnisciente, o uso reiterado da carta e a habilidosa construção de diálogos, visando a conexão emocional entre o leitor e as personagens.
Publicado em 2020, o volume, com mais de 700 páginas, intercala dois blocos de fotos de arquivos familiares e inclui um prefácio, uma árvore genealógica, notas, agradecimentos e a bibliografia de apoio. Dividido em seis livros e totalizando 158 capítulos curtos, “O Bisavô” faz da sua extensão um dos seus atrativos porque tal dimensão permite à voz do texto não só sugerir ao leitor a engrenagem do tempo, como também cativá-lo com elementos de tensão e oferecer-lhe um pano de fundo do período compreendido entre finais do Fontismo e inícios do Estado Novo.
A narrativa de extração histórica começa “in medias res”, com uma cena na alcova que apresenta Manoel com a sua misteriosa amante, “Elle”. A partir daí, a ação segue a sucessão de acontecimentos. Alternando fortúnios e dissabores próprios da vida corrente de uma família da classe alta, a estrutura diegética assenta no jogo de oposição entre os vários perfis em cena, definidos a partir da geração, do género, da condição, do temperamento ou da posição política. Não escondendo a autora o seu pendor feminista, as protagonistas revelam-se mais complexas do que os homens, quase sempre presos a uma realidade unidimensional.
No texto romanesco e biográfico, a Guarda descortina-se aos poucos como aquele lugar das origens, fundador, a partir do qual se constrói uma geografia sentimental. Os núcleos urbanos destacados são aqueles onde se firmaram as famílias Patrício, Balsemão e Lopo de Carvalho: a rua do Arrabalde (atual Dr. Lopo de Carvalho), a rua D. Luís I (atual 31 de Janeiro), a “Praça da Sé”, o consultório e o Sanatório aos quais o reputado tisiologista (1857-1922) deu fama. No início da história, a Guarda não passa de um burgo «trancado no interior das serras». Ninguém faltava à Procissão do Sr. dos Passos e boa parte das meretrizes, essas, vinham de Espanha. A Maçonaria agia na sombra enquanto a Igreja reagia contra os «jornais hereges» aí impressos. Sempre sob o signo de um clima «diabólico», a cidade começa a expandir-se, consolidando-se os polos da gare, da fábrica de lanifícios no Rio Diz e do Sanatório. Após o advento da República, a crescente presença de tísicos na urbe era vista como uma ameaça à saúde pública e rapazes da região alistavam-se ou eram alistados no CEP. Em 1939, deslocando-se à Guarda, Manoel deixa um sobrescrito dirigido a uma futura bisneta, com «uma longa carta», talvez sobre a história da vida dele…
Ciclópico, mas fácil de ler, o romance encena ilustres guardenses que – passe a máxima kennediana –, não se perguntavam o que é que a sua terra podia fazer por eles, fazendo antes por ela, apesar de forças adversas não suportarem tamanha notoriedade.
* Técnico superior no Museu da Guarda