Junto à parede do fundo do supermercado, os movimentos do homem do talho revelavam-se mais amigos da conversa, de quem espera ser atendido, que da produtividade. Movia-se com o cuidado de quem não está para ser injuriado pelo cutelo. Ou atingido por alguma falha de osso que saltasse do entrecosto estendido ao longo da montra do balcão frigorífico. Estrategicamente disposto para separar clientes e talhantes, ainda que sem impedir a conversa entre quem corta os bifes e quem espera que sejam cortados. Enquanto o homem do talho repetia o pedido da cliente, aqui para nós, mais para a corrigir sem melindrar do que para confirmar se tinha percebido o pedido, “oitocentas” gramas, duas outras, enquanto esperavam a sua vez de ser atendidas, ignorando entrecostos e cutelos, trocavam, entre si, títulos da mais variada índole.
Os muitos “ah bon!” com que tingiam a conversa, além de amenizar a intenção de a conversa parecer mais séria do que realmente era, denunciava-as como antigas emigrantes. Ainda assim, falam dos tempos que passaram em França, do que por lá deixaram e do que por aqui não voltaram a encontrar, antes de prosseguir com a apresentação da dimensão das famílias. Uma tinha seis irmãos e irmãs. Não eram seis de cada género, eram seis ao todo, mas dos dois géneros. A outra foi mais precisa e confessou que tinha dois de cada género. Uma não tem prole, porque Deus não quis. A outra tem duas raparigas e um rapaz. Todos criados e “arrumados”. Feitas as apresentações da família, saltam às dos médicos e hospitais e passam às das mazelas. Uma era diabética, a outra sofria do fígado. Não houve, por perto, quem afiançasse que aquilo não passava de contaminação ecológica. Ao fim e ao cabo, o canto do talho estava rodeado de batatas fritas, queijos e enchidos, mas ambas afiançavam que a doença era real e não permitia grandes veleidades gastronómicas. Por essas alturas, era impossível não desviar o olhar em direção aos respetivos carrinhos de compras. Gesto que, não passando despercebido a nenhuma das circunstantes, determinou o esclarecimento de que aquilo era tudo para os maridos, filhos e netos e quase se podia jurar que, por breves segundos, as proeminentes barrigas encolheram um bom centímetro.
Embalados os oitocentos gramas de carne, “oitocentas” no entender do talhante, acaba-se a circunstância. Sem mais nem boa, perdeu-se o fim da conversa que durante cerca de dez minutos (que isto, de escolher o pedaço de carne, retirar da montra, levantá-la no ar para que a clientela a possa apreciar em toda a sua dimensão, cortar, pesar e embalar, leva o seu tempo) foi capaz de acontecer sem evocar nenhuma das coisas que não param de apoquentar qualquer bom mortal. Surgindo, de imediato, a dúvida se isso teria acontecido por as duas desconhecerem a ocorrência dos últimos desastres que dão em assolar o mundo ou se, simplesmente, não eram nem boas, nem mortais. De qualquer maneira, distraindo-nos, ainda que só por dez minutos, de tanta tragédia, tirando o problema da diabetes e do fígado, alguma coisa de bom e mortal terão.
Dez minutos de pausa
“Enquanto o homem do talho repetia o pedido da cliente, aqui para nós, mais para a corrigir sem melindrar do que para confirmar se tinha percebido o pedido, “oitocentas” gramas, duas outras, enquanto esperavam a sua vez de ser atendidas, ignorando entrecostos e cutelos, trocavam, entre si, títulos da mais variada índole. “