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A cultura e o povo

Razão e Região

Ora aqui está um bom tema para reflexão. Sobretudo quando estamos a assistir ao triunfo das chamadas «indústrias culturais» fortemente induzidas pela revolução tecnológica. Como diz Theodor Adorno, na «Dialéctica do Iluminismo» (1944), desta irrupção não resultou o caos, mas sim uma verdadeira ordem cultural, uma autêntica homogeneização das formas culturais. Um outro autor, Walter Benjamin, alguns anos antes, em finais dos anos trinta, falava do fim da «aura» da obra de arte, com a emergência da possibilidade da sua reprodutibilidade técnica e consequente massificação, com perda de singularidade. A outra face desta revolução reside na emergência da centralidade de um público massificado que rompeu com o espaço restrito das salas de espectáculos, superando fronteiras, diluindo a fruição e levando-a até ao mais íntimo dos espaços privados. Ou seja, a cultura já não pode ser concebida, por um lado, como puro processo subjectivo de produção estética, onde a componente instrumental é externa à concepção estética, já que a tecnologia passou a integrar o próprio processo criativo de forma muitas vezes dominante e avassaladora, e, por outro lado, como espaço público de fruição comunitário, já que a cultura está hoje quase integralmente disponível para pura e simples fruição íntima, em espaço integralmente privado. Por outro lado, a própria noção de cultura dilatou-se, como nos está a sugerir a própria expressão «indústria cultural», envolvendo múltiplas formas de produção simbólica que até há bem pouco tempo eram consideradas como mero «entretenimento». O debate sobre as formas de produção televisiva, a defesa da televisão como forma de cultura popular contra um suposto criticismo de esquerda que abominaria o próprio sistema de produção televisivo, enquanto forma inferior de produção simbólica, é bem elucidativo do «estado da arte». Nem sequer é necessário lembrar a vastíssima reflexão de Gramsci sobre as formas de cultura popular e a sua extrema valorização da dimensão dionisíaca da vida na tradição teatral siciliana – veja-se a sua valorização de «Liolà», de Pirandello – para valorizar a componente popular das formas de produção cultural contra o convencionalismo abstracto das formas culturais dominantes.

Desde sempre a dimensão popular da cultura foi fortemente valorizada, especialmente pela esquerda cultural. A verdade é que, hoje, esta componente tem vindo a assumir outras dimensões que não as tradicionais. E isso tem a ver com a ruptura do paradigma cultural tradicional, fruto da revolução simbólica. Que dizer da Pop Music? E da Pop Art? Das caixas de tomate de Andy Wharol? E da publicidade Benetton, da responsabilidade do grande fotógrafo Oliviero Toscani? E do «desviacionismo» ?

A verdade é que a dicotomia cultura popular/cultura erudita começa a fazer cada vez menos sentido, já que o suporte em que é possível fruir uma ou outra pode ser o mesmo. Ambas podem ser vendidas no mesmo supermercado e fruídas pelo mesmo sujeito. É, de facto, a explosão e a disseminação das várias formas simbólicas que gera uma espécie de pós-moderna confusão de géneros e que anula a velha dicotomia. Mas, afinal, quanto de música popular encontramos nas mais variadas composições do genial Mozart? E quanto de ruídos da vida quotidiana integram importantes peças da música contemporânea?

A velha dicotomia soa-me a desfasamento temporal e, sobretudo, a enclausuramento especialístico nas paredes invisíveis do snobismo intelectual. Que efeitos estéticos podem resultar da captação de imagens da transumância nas serranias? Ou melhor: onde reside a elaboração estética da transumância? Não será na captação por uma câmara dessas imagens perdidas no rolar cíclico da vida em meio rural?

O velho Gramsci gostava, de facto, daquele Liolà pirandelliano e siciliano que cantava a simplicidade da vida, afundando a palavra e o ritmo na força dos sentidos e na exuberância da natureza e valorizando as coisas simples e básicas da vida porque era nelas que ele via as sementes do futuro que haveriam de romper com o formalismo arcaico burguês e o ritualismo paralisante das tradições retrógradas.

Afinal, ainda há bem pouco tempo eu próprio emoldurei um lindíssimo bordado que a minha avó Josefina, mulher simples da aldeia, fez em homenagem ao amor da sua vida, o meu avô Joaquim Pinto. Está lá exposto na minha galeria pessoal, a parede da minha casa, em Famalicão da Serra. E já não é um simples fragmento de memória afectiva… É uma obra de arte. Um objecto cultural.

Por: João de Almeida Santos

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