1. A fuga tem duas predestinações mais ou menos aceites pelo imaginário popular: a evasão penitenciária e o itinerário da consumação plena de alguma paixão fulgurante, que não espera pela aprovação das circunstâncias onde nasceu. Ambas são depositárias da rêverie romântica, ao jeito de Dumas, ou Camilo, respectivamente. No entanto, só a segunda encerra o núcleo essencial do amor trovadoresco. Ou seja, a representação do amor tal como o Ocidente o conhece, nascida algures na Provença do séc. XII. O maior problema destas movimentações, antes feitas a cavalo e hoje perfeitamente motorizadas, é que ninguém fala do local de chegada. Nada se sabe do que aconteceu “depois”. Ou seja: o normal é dizer-se: “fulano e sicrana (ou fulano e sicrano, ou sicrana e fulana, sim, é melhor ampliar as variáveis politicamente correctas, não vão as associações “do sector” cair-me em cima) fugiram os dois anteontem, abandonando tudo”. Descontado o pleonasmo da última parte, raramente o local de chegada, ou o desenvolvimento da história romanesca, são tema de conversa, ou mesmo objecto de curiosidade. Porque será? Pudor? Seria bom demais. Desinteresse? A proliferação de romantismo de cordel e das revistas cor de rosa desmentem a hipótese. A minha aposta vai para outra possibilidade, aparentemente menos óbvia: o mito do “foram felizes para sempre” impõe aqui a sua cortina de silêncio cúmplice. É que, se a fuga denota arrojo, também comporta um risco. E quem se arrisca não o faz sem uma determinação acima do cálculo e à margem da decepção. E não é menos verdade que o heurístico “happy end” é a homenagem possível que a resignação videirinha dedica à grandeza. Ou que uma curiosidade indisciplinada consagra ao que já pertence a uma ficção demasiado próxima da realidade. Portanto, para todos os efeitos, “viveram felizes para sempre”. Porquê? Don’t ask, don’t tell!. Caso encerrado.
2. É quando a natureza descarrega a sua fúria que mais devemos respeitá-la. Vendo bem, nós somos os intrusos, ao longo de milhões de anos em que ditava as suas regras. E ao contrário das crenças positivistas, nunca conseguiremos domá-la. As catástrofes naturais não têm assinatura. Para o que agora interessa, acontecem desde que há vida. Alterações climáticas sempre houve. É ponto assente que as ocorridas na actualidade têm incidências específicas em calamidades. Mas culpá-las por tudo é perigoso. As cidades são mal planeadas? A rede capilar de drenagem é bloqueada por construções? Não há sistemas integrados de escoamento em zonas críticas, nomeadamente urbanas? Já sabemos a resposta. Espero que, nas últimas semanas, tenhamos aprendido mais alguma coisa. O resto, deixo aos especialistas.
3. A minha ambição secreta continua a ser tornar-me um daqueles totos com barba aparada, aspecto trendy e urbanitas de primeira água. Muito requisitados na publicidade e nas telenovelas. Tenham presente a réplica serôdia do Grande Lebowski, na recente publicidade do Lidl. São uns queriduchos, muito apreciados por gajas que falam com voz mimada, tiveram uma tia hippie, engraçaditas e que, embora sabendo-se acompanhadas de totos, estão certas de que ‘eles’ não dão muito trabalho, serão exemplares a mudar fraldas, no sexo tântrico e, sobretudo, as amigas vão morrer de inveja. São uma espécie de faroleiros com ar natalício e sem a marca de água do solipsismo. Modelos do estereótipo da “relação bem-
sucedida”, aprovada pelas revistas da especialidade e pelo Eduardo Sá. Apresentam o ar sonhador de quem vai fazer o Pacific Crest Trail com uma perna às costas, mas sem abdicar da determinação de jovem executivo. Capitães Iglo mais novos e menos folclóricos. Um must.
4. Bem sei que “as pessoas” não gostam da realidade sem cuidados paliativos. E que, no caldeirão das memórias onde resgatamos a vitalidade possível, tanto podemos encontrar uma roda dentada que nos oprime, ou compor as asas que nos libertam. Um belo dia, percebemos que a vida não é um registo contínuo, mas uma sucessão de fotos que é preciso ligar para obter visão panorâmica. E perceber porquê é que negamos com unhas e dentes precisamente a mais crua evidência. De modo a que, quando essa realidade bate à porta, já temos a chaleira ao lume.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
**No calendário vegetal celta, significa “bétula”