1. O país tomou conhecimento do insólito caso do TMG. O caso conta-se em poucas palavras. A Câmara Municipal da Guarda candidatou-se a um concurso da DGArtes, do Ministério da Cultura, para apoio à programação do Teatro Municipal (TMG). Candidatura complexa e difícil, mas que mereceu aprovação integral, e sem reparos, da comissão técnica de avaliação da DGA, tendo-lhe sido atribuída a verba solicitada: 800 mil euros para o período de 2022-2025 (das 38 candidaturas aprovadas, o TMG faz parte das 12 a que foi atribuído o valor máximo). Quando lhe foi comunicado o resultado do concurso, o presidente da Câmara, Sérgio Costa, manifestou publicamente o seu agrado, sublinhando a importância reconhecida a um dos melhores Teatros Municipais do país. Mas foi sol de pouca dura porque o insólito aconteceu. O mesmo presidente vem agora dizer que não assina o contrato. Decisão, ao que diz, suportada também num estranho relatório da própria comissão que elaborou a candidatura, onde se diz que a programação «não se aproxima da realidade cultural da gente destes territórios», não se adequa «à realidade dos recursos humanos, técnicos e financeiros», sendo «pois preferível informar a DGArtes de que o município da Guarda não pretende assinar o contrato, porque será difícil de explicar qualquer rescisão por incumprimento da candidatura» (citado da notícia do “Público” de 31.12.2022). Caso único no país, a rejeição do próprio sucesso é coisa absolutamente incompreensível.
2. Mesmo assim, vejamos, que outros motivos o presidente invoca? Em primeiro lugar, diz que, assinando, teria de investir uma elevada verba por ano; em segundo lugar, que a quebra de espectadores, de 2019 para cá, em cerca de 5 ou seis mil (cerca de 40% de público), exige uma profunda alteração de programação; e, em terceiro lugar, que se torna necessário aproximar a programação do gosto e do sentir dos munícipes. Ora acontece que o próprio documento de candidatura elaborado pelo TMG, prevendo um orçamento de 2. 808.910,00 €, o apoio da DGArtes reduzi-lo-ia para 2.008.910,00 € (são os valores que constam da candidatura), ou seja, para 500.000 € média/ano. Se deste valor subtrairmos as receitas de bilheteira previstas na candidatura, 101.430,00 €, a comparticipação da CMG seria reduzida para 400 mil euros em média anual, precisamente o que o senhor presidente declarou por escrito ser seu compromisso investir no TMG.
3. Não se entende, pois, por que razão o senhor presidente fala de 3,3 milhões ou de um valor anual de quase 800.000 euros. Depois, a explicação para a descida do número de espectadores não pode ignorar a gravíssima crise inflacionária que, em 2022, afetou o país, levando o Governo a efetuar vários apoios excecionais às famílias, sendo que antes se vivera em plena crise pandémica. Esta situação levou a que, como é natural, e como aconteceu em todos os outros sectores, se verificasse uma forte retração na procura. Finalmente, sobre a qualidade da programação, deve dizer-se que é matéria que deveria ficar entregue aos profissionais da cultura, em primeiro lugar, à equipa dirigente do TMG (mesmo e apesar das conclusões do incrível relatório referido pelo senhor presidente) e, em segundo lugar, os próprios critérios adotados pela DGArtes e pela sua comissão especializada. Na verdade, não creio ser competência específica do presidente da Câmara a definição de concretas programações, mas sim a escolha de profissionais competentes em condições de oferecerem uma programação de qualidade e ao nível do equipamento em questão.
4. A Guarda sempre se distinguiu por um investimento significativo na cultura, tendo durante os executivos do PS dedicado mais de 8% do Orçamento à cultura (este é o valor de 2012). Valor que, no orçamento para 2022, já é inferior a 3,5%, o que, de resto, pode explicar, em parte, esta estranha decisão do senhor presidente da Câmara. Mas decisão que, a ler bem as suas afirmações e até o que diz o próprio relatório referido, pode também indiciar a intenção de vir a reorientar a programação mais de acordo com objetivos políticos do que com objetivos culturais, promovendo uma espécie de tabloidismo cultural com óbvios desígnios políticos.
Em qualquer caso, esta decisão é mesmo incompreensível e indicia uma grave rutura com uma tradição que sempre foi o orgulho da Guarda, a sua tradição cultural, em grande parte, mas não só, interpretada pelas programações e pela atividade do TMG. Esta opção faz temer o pior também nas outras frentes da atividade da Câmara porque ela indicia uma visão política que assenta mais numa ótica de tipo populista do que numa gestão racional, crítica e de longo prazo do nosso destino coletivo.
* Deputado do PS na Assembleia da República eleito pelo círculo da Guarda e líder da concelhia do PS da Guarda