Ngetal*

“É nos costumes, opções e estilos de vida, ou ambição cultural, que realmente se materializam as opções políticas. Conheço gente que se diz socialista, ou “purguessista”, mas que aderiu completamente aos valores convencionais que dizem rejeitar. “

A afectuosidade de Marcelo é um pau de dois bicos. Assemelha-se a um pastiche decalcado do ideário do Estado Novo. Como a arquitectura revivalista à Raul Lino. Para Marcelo, Portugal é o dos Pequeninos e o das tricas segredadas entre políticos e jornalistas. Onde ele paira, omnipresente, como Gulliver sobre Lilliput. Marcelo não se dá conta da sua sobranceria loquaz. Não é um gentleman, como Passos, mas um narciso, com epicentro no eixo Lisboa/Cascais. A sua necessidade de gratificação popular é avassaladora. Mas quando sai desse mundo florentino, é uma espécie de senhor Hulot, em férias pela exótica província. Não para destapar o absurdo, como o personagem de Jacques Tati, mas para disfarçar a condescendência e a soberba com gestos exuberantes, quase teatrais, buscando uma proximidade por empréstimo…
Um conhecido advogado de uma grande sociedade deu uma entrevista ao “Observador”, onde descreve o seu estado de depressão. O seu depoimento tem sido muito comentado. Há boas razões para isso. O entrevistado revela coragem em se expor, sem dúvida. Mas esta exposição, ainda que merecedora de genuína solidariedade, cria como que uma barreira de luz, que não deixa ver os verdadeiros dramas da profissão. Sobretudo de quem está longe do estrelato e das passerelles da fama. Na verdade, o caso está mais ao nível de uma série americana, com grandes escritórios cheios de advogados seniores e juniores, executivos/as glamorosos/as, que bem podiam ser modelos publicitários, algures entre Wall Street, Washington DC e a City londrina. Ora, no mundo real, as coisas não são assim. O cenário do mundo profissional liberal não é assim tão esquálido, como que saído de uma novela de Dickens. Há pequenos, pungentes e silenciosos dramas e inquietações, mas não tragédias épicas. Aumentando o foco, este desconforto transmitido pela peça jornalística é, digamos, uma prerrogativa das grandes sociedades de advogados e das grandes urbes. Aí sim, os níveis de stress e desumanização podem conduzir a bloqueios. Mas vendo bem, é tudo uma questão de filosofia de vida. Quem privilegia a ganância e o sucesso a qualquer custo, abdicando da qualidade de vida, do tempo para si, das coisas simples, da cultura, sujeita-se ao pior. Arno Gruen, na sua obra monumental “Da Loucura à Normalidade” explica porquê. Segundo ele, a doença contemporânea é a psicopatia, a doença da normalidade. Uma normalidade alucinada, entenda-se. A adesão amoral ao sucesso, à carreira, à ambição sem freios, dificulta ou imoede o acesso à vitalidade interior que nos faz ser empáticos, criativos, generosos. Cria um fosso nos que venderam a sua alma ao que julgam ser o triunfo, a glória. Que não só os impede de ver o que deixaram para trás, como os faz recear essa visão. É disso que falamos aqui.
É nos costumes, opções e estilos de vida, ou ambição cultural, que realmente se materializam as opções políticas. Conheço gente que se diz socialista, ou “purguessista”, mas que aderiu completamente aos valores convencionais que dizem rejeitar. À linearidade da vidinha e dos valores pequeno burgueses. Em contrapartida, sei de muita gente mais à direita, cujas opções de vida são francamente fora da caixa. Por exemplo, no meu caso. Embora politicamente compósito, estou muito mais próximo dos valores defendidos pela direita liberal. No entanto, em relação à moral e (maus) costumes, podia perfeitamente sintonizar com o Bloco. E em relação à sofreguidão da posse, padeço do mesmo desapego de um franciscano.
As mulheres deviam prestar mais atenção aos cínicos. Em vez dos proverbiais paus mandados, também chamados fraldeiros. Um cínico é confiável na sua aspereza contundente, mas delicada. Poderiam nele descobrir um amante desapontado, que com facilidade constrói um labirinto para agitar o ardor. E um falso mistério, que se desenrola numa sucessão de jogos intensos. Em contrapartida, um pau mandado é um fraco. Um amante desistente. Um presságio do inevitável bocejo mortal.

* No calendário ogham celta, significa “junco”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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