Entre a História e a lenda, a força criadora da literatura

Escrito por Thierry Santos

“Ao certo, o narrador constrói uma história de companheirismo, pelo que o respeito mútuo tem de alentador, entre homens de idades e vivências distintas. “

“O Segredo da Lagoa Escura” é a última prosa de ficção de Nuno Matos Valente, autor de manuais escolares e de livros infantojuvenis, com ampla experiência como mediador educativo. Nesta narrativa, que reencena a expedição científica à serra da Estrela em 1881 e, em modo acelerado, a travessia de Capelo e Ivens entre Angola e a costa do Índico, combinam-se factos históricos, o discurso da ciência da época, uma lenda e o seu quê de fantasia numa aventura que põe o leitor entre aqueles que a vão viver, projetando-o no ambiente das viagens expedicionárias de finais do séc. XIX a paragens mal ou nada conhecidas.
O ponto fulcral do enredo incide na aposta que Hermano Garrancho, viajando num navio mercante, fez com um tal de Herman Melville: se Hermano provasse que uma lagoa da serra beirã, como reza a lenda, se liga ao mar, ao escritor americano caberia difundir a notícia pelo mundo inteiro. Passados largos anos, ao saber que a Sociedade de Geografia de Lisboa ia lançar uma incursão à serra da Estrela, D. Hermano, já aposentado, vê a oportunidade de tirar a lenda a limpo, urde um estratagema para tomar parte na expedição, comprometendo o amigo de longa data, o major Dandes Tulipa, e arrastando com ele Salomão, o sobrinho adolescente, criador de engenhocas e a quem compete, naturalmente, desempenhar o papel principal da ação.
A par destes aventureiros de papel, o médico Sousa Martins, o capitão Brito Capelo, o capitão Marrecas e o jornalista do DN, Eduardo Coelho, protagonizam essa jornada ao país profundo, que começa de comboio e acaba a cavalo, com troços percorridos em carros-diligência. A caravana transporta equipamentos de laboratório e apetrechos para assentar arraiais durante quinze dias nessa montanha tão inóspita como misteriosa, onde o lacrau, a víbora, os lobos e o temporal repentino podem representar um perigo de vida.
A Guarda, eleita como centro de operações da expedição e principal fornecedora de logística, apresenta-se nesse verão como uma cidade risonha, animada por vendedeiras, negociantes de gado e crianças à solta. A voz do texto sublinha a escolha do Hotel Central na acomodação dos cientistas e a hospitalidade da população local. Recorde-se que foi em consequência desta campanha que Sousa Martins atraiu a atenção da Medicina de então para as excelentes condições climáticas que a região serrana oferecia ao tratamento da tuberculose, o que deu aí origem à edificação de várias casas de saúde. A dedicação do clínico no cuidado aos doentes deixa adivinhar a fama de santidade que irá granjear.
Ao certo, o narrador constrói uma história de companheirismo, pelo que o respeito mútuo tem de alentador, entre homens de idades e vivências distintas. Se a pastora Maria Chispa, a filha e o cão Mondego não contracenassem com esses heróis, seria uma história feita só por homens movidos pela curiosidade científica e surpreendidos por uma situação tão inexplicável que dela guardarão segredo.
Em suma, Nuno Valente, com esta obra, inscreve-se no filão da “crossover fiction” que tanto cativa adolescentes como adultos. A exemplo da saga Harry Potter, ou do livro “A Vida no Céu”, de Agualusa, “O Segredo da Lagoa Escura” enuncia um rico universo cultural, num estilo depurado, rigoroso na informação, ágil nos diálogos e minucioso na descrição dos cenários. Professa a importância de viajar e contar histórias e encena personagens positivas que fazem a experiência de um mundo alternativo. Num volume de cerca de 300 páginas dividido em 7 capítulos, as cenas são montadas em sequência não linear, como numa narrativa fílmica. A última palavra virá do autor de “Moby Dick”.

Sobre o autor

Thierry Santos

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