Sempre que lhe é possível assiste ao morrer do dia. O monte desenha-se desigual. Parece acumular uma luz esquecida que transforma num sopro de silêncio. Ela segreda-lhe – que te demores assim em todas as tardes. Sabe dos pássaros que no inverno se ocultam para lá da bruma. Da sua simulada fragilidade. Dos vôos entorpecidos. Dos acenos imperceptíveis e do rasto difuso de onde pende toda a sabedoria. É nesse momento que a paz se instala e emudece o infinito.
Hoje uma dor estranha assalta-a por saber que amanhã o olhará de uma outra forma. O incêndio tomou conta do monte.
Suspensa, como se nos limites da terra, olha o ponto de fuga. Há imagens desenhadas em novelos de fumo que desconhece. O céu um labirinto a duvidar da beleza. Do cume do mundo segredos de árvores são varridos, aterrorizando pequenos animais. Soubesse ela como nomeá-los e construiria uma cerca para lhes mostrar o coração da terra.
Quer acreditar que não passa de uma distorção na fragilidade da matéria. Leva as mãos ao rosto e esconde o olhar. O fogo vai devorando como se nada fosse tocado. É quase uma imobilidade. Por detrás das vidraças um silêncio translúcido varre-lhe o corpo. Quer ouvir as vozes da geologia incandescente. Saber como bombeiam o sangue. Sobre a violência deseja abrir canais que a transportem até paragens errantes.
Julga ver novas palavras sobre os rochedos. E atravessa as imagens como se procurasse sementes ou rasgões de luz. Desata os cabelos e fere a avidez das chamas. Abre fendas onde se escreve espaço ou se contorna a voz. Nocturnos gestos milenares assaltam os telhados das casas e uma cor pedrenta insiste em ferir a garganta. Não há sabedoria que vede o olhar. Deixa-se cegar como se o medo excedesse as nervuras fumegantes.
Há uns dias o vento oeste trouxera-lhe o som do amola-tesouras. Um encantamento que a deslumbra. Aguarda que o som se aproxime da sua casa. Espreita pela janela como em criança, abre a porta e o som está quase ali. Inquieta, quase se comove.
A bicicleta puxada à mão vai surgindo ao fundo da rua. Corre para não perder o momento de reviver a magia. Dá-lhe algumas facas para afiar e pede-lhe que sopre aquele som só para si. O homem conta-lhe de onde é e como ali chegara. Uma ternura intemporal apodera-se do instante. E lá parte o amola-tesouras, bicicleta empurrada pelos seus braços magros, na boca a flauta de pan. Nesse mesmo dia volta a vê-lo numa rua ingreme da cidade. Afigurou-se-lhe mais magro e mais velho. Um fino rabo-de- cavalo sobre as costas curvadas a lembrar épocas de maior glória.
Em tempos acreditava-se ser este som anunciador de chuva. A esperança torna cada esquina mais flexível e o monte mais verdejante. Assim não aconteceu desta vez. A chuva recusa cair e o calor quase abrasa a terra e os homens.
É então que o mato rasteiro principia a arder. Terá sido esse o primitivo sinal do incêndio. O olhar da cidade vira-se para o monte e com mágoa assiste a uma espécie de auto-de-fé. As árvores vão morrendo dignamente. O amola-tesouras deixa para trás o som inigualável da flauta. É melancólico e já não a comove. Não o quis escutar. Tapa os ouvidos com as mãos. As faces rosadas são um espelho de lume. Gotas que lhe sabem a sal escorrem como chuva morna. Algo sagrado se abateu sobre ela e um manto cobre-a de negro.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia