Durante cerca de dois anos vivemos com saudades do futuro. Praticamente impedidos de aceder à normalidade (seja lá o que isso for), ansiávamos por ver chegar o dia em que pudéssemos voltar à vida tal como a conhecíamos antes da pandemia. Obviamente que nem antes, durante ou depois a vida foi igual para todos, mas o “tudo vai ficar bem” lá ia cumprindo, mais ou menos, o propósito para que o inventaram. Nessa altura, ainda se podia inventar sobre o futuro: “se o vírus vier, fechamos-lhe a porta, se a porta pesar, pomos a máscara, se a máscara não chegar, desinfetamos com álcool, se o álcool não funcionar, arranjamos uma vacina…” Apesar de tudo, parecia que pelo menos os valores da solidariedade, as preocupações com o planeta e a esperança estavam a ser recuperados. Tanto assim pareceu que, logo a seguir, nos apressámos a querer mostrar solidariedade com o povo ucraniano, a condenar o invasor e a emprestar-lhe alguma da esperança que julgámos ter-nos sobrado da pandemia. Os voluntários, da confeção dos equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde e do setor social, converteram-se ao voluntariado no acolhimento aos refugiados. Até substituímos os desenhos do arco-íris pelos da bandeira amarela e azul nas janelas. Pelo menos, durante o tempo que o preço dos combustíveis permitiu, porque quando demos por ela, o futuro, que por tanto tempo tínhamos ansiado, acabou por não ser nada do que acabámos por encontrar.
Depois de algum controlo do vírus, pouco dados a contemporizar com o que quer que se atrevesse entre nós e aquilo a que consideramos ter direito, muito mais depressa arrumámos com quaisquer valores, que entretanto tenhamos vestido, para o fundo da gaveta do que com o direito a ir de férias para o estrangeiro, duas vezes por ano. Sim, porque uma coisa é querer ir-se de férias e ser proibido atravessar fronteiras, outra é querer ir e, por causa da guerra, dizem, o preço dos combustíveis não nos permitir. Terá sido assim que, na ressaca do confinamento por causa de um vírus, tenhamos acabado por dar connosco a ser tão iguais a nós próprios, por todos os lados. Se não vejamos, por serem descartáveis mais cedo do que os homens, depois dos cinquenta, as mulheres continuam muito mais preocupadas com a aparência do que com os achaques da menopausa. Por serem dóceis, os bons alunos não deixam que os professores vejam os outros. Por ser mais fácil comprar do que fazer, continua a não haver máquinas de costura na grande maioria das casas. Por demorarem a ler, os livros continuam a ser só para quem não tem mais nada que fazer. Além de ler, claro. Por serem difíceis de manter limpas e confortáveis, as casas velhas continuam a cair vazias e sozinhas sobre si mesmas. Realmente, não fora pela guerra, ou melhor, pelo aumento dos preços por causa da guerra, e pelos desenhos colados nas janelas, até pareceria que tínhamos mesmo voltado ao normal. Ou, pelo menos, à possibilidade de inventar uma qualquer normalidade futura.
Pós-normalidade
“Quando demos por ela, o futuro, que por tanto tempo tínhamos ansiado, acabou por não ser nada do que acabámos por encontrar”