A claridade da manhã dava à paisagem a nitidez das coisas acabadas de lavar. A luz do Sol, filtrada pelas nuvens leves, deixava ver até os contornos mais débeis das pedras, das plantas e das penas dos pássaros que vigiavam a escadaria que levava à catedral. Sentadas, aqui e ali, as pessoas deixavam-se deslumbrar pelo brilho dos reflexos do mar por detrás dos telhados. De vez em quando, as gaivotas vinham pedir um pedaço de comida com ar ameaçador, de vez em quando, as gaivotas disputavam entre si os pedaços que sobravam dos piqueniques nas escadas e quase interrompiam o silêncio. As aves mais jovens, ágeis e incautas, eram as primeiras a chegar aos pedaços de maçãs atirados por quem se entretinha a espicaçar-lhes a gula. Apanhavam-nos com o bico pequeno mesmo antes de serem atacadas pelas mais velhas e corpulentas que as obrigavam a deixá-los cair para se defenderem. Atentas, as mais inteligentes acabavam por os apanhar do chão enquanto as outras, ruidosamente, se digladiavam até à exaustão. Durante a manhã, os sinos tocavam como se a cada fim de luta os catadores dos pedaços de maçã disputados merecessem ser ovacionados. Com os telefones inteligentes, os relatores de contenda registavam que a caça nem sempre é para o caçador e por ali ficavam a aguardar os efeitos do registo nos seus seguidores das contas nas contas das redes sociais.
A manhã haveria de continuar, as gaivotas haveriam de repetir, incessantemente, as suas performances alimentícias, mas o impacto dos registos acabará por alienar, indiscriminadamente, todos os relatores de cada uma delas e os seus seguidores por arrasto. Sobre este e outros relatos semelhantes, achados por acaso na internet, há de escrever-se mais do que sobre a natureza das gaivotas e a lógica da vida selvagem que, não fora pelo tipo de armas utilizadas, mal se distingue da da vida civilizada. Há de escrever-se, ainda mais, sobre o que será escrito e, quando não sobrar qualquer elo que permita remeter-nos para a cena original, já ninguém perceberá que a cena ocorreu numa manhã de luz bonita, numa praça quase encantada pertinho do mar. Já que, parece irrefutável, os mais voluntariosos e incautos internautas hão de atirar-se sobre os registos comentando, aguerridamente, os comentários anteriores. Os mais robustos atacá-los-ão com todas as correções ortográficas que tiverem ali à mão e os mais inteligentes partilharão, incessantemente, os apontamentos melhor conseguidos da cena bélica.
Depois, cada um poderá querer, ou não, construir um relato parecido a partir da sua própria versão dos factos. Pelo que, uns partirão à procura daquela praça, em concreto, outros, por considerarem que, ao fim e ao cabo todas as gaivotas acabam por ser iguais, partirão à procura de uma praça qualquer. De uma maneira ou de outra, haverá sempre quem se disponha a registar qualquer coisa com que nos distrairemos durante os segundos em que olhamos. e, se for caso disso, durante os minutos que levarmos a decidir o que fazer com o que acabámos de ver. Geralmente, nada.
Instantâneos do vulgar
“Com os telefones inteligentes, os relatores de contenda registavam que a caça nem sempre é para o caçador e por ali ficavam a aguardar os efeitos do registo nos seus seguidores das contas nas contas das redes sociais.”