A crise, a queda, os escrúpulos e falta deles

Escrito por Jorge Noutel

“Cada vez mais se percebe que existe o propósito deliberado de reduzir o SNS a um “mínimo-SNS para os mais pobres”, obrigando os restantes portugueses a adquirirem seguros de saúde e a promoverem assim o negócio privado da saúde no país e os grandes grupos da saúde.”

Depois de, na última crónica, termos denunciado algumas das mentiras que nos tentam impingir acerca da ULS da Guarda, hoje falamos de algo mais acima. Para começo de conversa, lembrar que Portugal é um dos países da União Europeia onde a percentagem de despesas de saúde paga diretamente pelas famílias é mais elevada, aumentando as desigualdades, pois só recorre a este meio quem tem dinheiro. Cada vez mais se percebe que existe o propósito deliberado de reduzir o SNS a um “mínimo-SNS para os mais pobres”, obrigando os restantes portugueses a adquirirem seguros de saúde e a promoverem assim o negócio privado da saúde no país e os grandes grupos da saúde.
O aumento do número de portugueses sem médico de família, as listas de espera para realizar cirurgias com meses e meses de atraso, a corrida em massa dos portugueses às urgências dos hospitais porque os centros de saúde não respondem às suas necessidades, o cansaço e desmotivação dos profissionais de saúde, são sintomas claros de uma situação grave que já não pode nem deve ser disfarçada. Entre dezembro de 2018 e abril de 2022, o número de utentes sem médico de família aumentou 88%.
Esta incapacidade crescente dos cuidados primários para responderem às necessidades da população está a agravar a desorganização do SNS, com a população a ser obrigada a recorrer às urgências dos hospitais públicos com custos muito mais elevados (uma consulta na urgência de um hospital custa mais do dobro de que uma consulta num Centro de Saúde), congestionando-as e impedindo que elas se dediquem a doenças mais graves. Mais de 40% das urgências hospitalares podiam e deviam ser feitas pelos Centro de Saúde.
Mas há mais causas que levam à degradação do SNS. A desorganização que impera é determinada pela inércia e incapacidade de chefias escolhidas, muitas vezes, por critérios meramente políticos. A promiscuidade com o sector privado, as múltiplas ineficiências, o desperdício, a escassez de profissionais em áreas críticas, a inexistência de carreiras e de remunerações dignas, etc., tudo isto está a destruir o SNS. A cegueira e o negacionismo do Governo são preocupantes. Não espanta por isso que a causa principal seja a insuficiência sistemática de recursos financeiros, ou seja, o subfinanciamento crónico do Serviço Nacional de Saúde, que, por sua vez, agrava os efeitos das outras causas.
Mas analisemos os dados que o próprio Ministério da Saúde disponibilizou. Desde 2014, as transferências do Orçamento do Estado para o SNS são cada vez menores relativamente à despesa total do SNS, tendo o hiato aumentado 53% só entre 2018 e 2022. São os fornecedores quem aguenta as faturas por pagar, substituindo-se ao Governo e permitindo enganar os números do défice orçamental. Em 2015, início do 1º Governo do PS de António Costa, a dívida do SNS a fornecedores privados era de 1.437 milhões €; atualmente é já de 2.161 milhões €, tendo aumentado 612 milhões €, isto é, 40% em apenas 4 meses.
A inexistência de uma carreira digna e a perda significativa do poder de compra dos profissionais de saúde que trabalham no SNS é a cerejinha no cimo do bolo. A Remuneração Base Média Mensal ilíquida de 2022 é inferior à de 2010. Isto explica-se pela saída de profissionais com maior qualificação e experiência, por aposentação ou para o setor privado, e a sua substituição por profissionais com menor qualificação a quem se paga menos, bem como pela redução dos horários de trabalho. O poder de compra da remuneração base média líquida, ou seja, depois dos descontos e da dedução da inflação, dos profissionais de saúde diminuiu, no caso dos médicos, 21%.
Este ano a inflação aumentou já 7%, o que reduziu ainda mais o poder das remunerações dos profissionais de saúde e de todos os outros trabalhadores e está a destruir a Administração Pública e, de uma forma muito particular, o SNS. Proliferam as empresas privadas, aonde os médicos ganham bem mais como tarefeiros depois de abandonarem o SNS, as quais prestam assim os serviços que ele não consegue produzir. A rubrica do orçamento do SNS destinada às aquisições de “Fornecimentos e outros serviços” está, em 2022, orçamentada já em quase 1.100 milhões €. De facto, em tempos de crise, de caos e de destruição de qualquer sistema, não são os mais fortes, inteligentes ou mais bem preparados que ganham. São os mais desprovidos de escrúpulos…

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Jorge Noutel

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