O diretório de uma potência nuclear, a Rússia, decidiu atacar um estado soberano, a Ucrânia, sem ser em legitima defesa. Esta gratuita e ainda não explicada investida marcou o regresso dos piores fantasmas da história do continente europeu.
A ameaça à paz, o renascimento da barbárie da guerra, o florescimento de autocratas e a emergência da instabilidade e do medo era tudo o que não precisávamos após uma pandemia que deixou o mundo em suspenso. Vladimir Putin usou a força de um número imenso de tropas para tomar o país vizinho. O presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, queixa-se que a comunidade internacional deixou o seu país «sozinho a defender o seu Estado». O repúdio pela ofensiva, as sanções económicas e políticas impostas ao invasor por inúmeras nações ocidentais e até a oferta de armas, mísseis e recursos financeiros à Ucrânia, podem não ter sido suficientemente apreciadas por quem sofre os horrores da guerra, mas foram as respostas possíveis, as mais sensatas e as mais cautelosas.
Há um valor fundado que fala mais alto e que é evitar que a guerra se alastre a todo o continente com o envolvimento da NATO. Já sabemos como este conflito começou, mas não sabemos como ele pode acabar se não houver juízo e moderação. Putin diz que pretende «desmilitarizar e desnazificar» a Ucrânia. Na hipótese mais desbragada, isso significa anexar todo o país. Na mais bondosa, anular o seu poder armado e instalar na sua capital um governo pró-russo que se vergue à oligarquia russa e acabe com a liberdade política. Pelo que se viu até agora, a Rússia pareceu optar por uma intervenção rápida, cirúrgica e com o menor número de mortes possível, atacando infraestruturas estratégicas que enfraqueçam Zelensky e o obriguem a capitular, mas tudo depende da capacidade de resistência e de reação dos militares ucranianos. Se isso já é censurável e horripilante, o pior é que o presidente russo, que já mostrou em situações anteriores usar os métodos mais escabrosos e requintados para aniquilar os seus adversários, vem agora brandir com a poderosa ameaça nuclear, lembrando um desastre de proporções galácticas e humanitárias sem precedentes.
O tempo dirá se essa escalada rebentará ou não (todos rezamos para que não), mas uma coisa é certa. Agora foi a Ucrânia. Amanhã pode ser a Geórgia, o Cazaquistão ou os países do Báltico e a melhor prova disso mesmo é que em 2020 a Rússia alterou a sua Constituição para estender o mandato de Putin até 2036 e dispor que a legislação interna se sobrepõe a qualquer tratado internacional, o que legitima, na prática, qualquer intervenção externa para justificar desejos imperialistas. Cá temos, pois, o mundo dividido entre dois blocos. De um lado, a Rússia e China, que também aposta em anexar Taiwan e que desgraçadamente ajudará a suavizar os impactos das sanções impostas a Moscovo. Do outro, os EUA e os países da NATO, Japão e Austrália. O problema é que este segundo bloco é mais instável, já que mais não seja porque Joe Biden tem taxas de aprovação baixíssimas e Donald Trump, que é um admirador confesso de Putin, pode estar de regresso à Casa Branca em 2024, segundo as mais recentes sondagens.
É difícil prever os acontecimentos e o curso da história nos próximos tempos, mas as últimas décadas têm mostrado que a liberdade, a democracia e o respeito pelos direitos humanos tem prevalecido, mantendo a paz no mundo. Seria bom que a Europa, hoje muito enfraquecida, até pela saída do Reino Unido, robustecesse o seu poder militar e percebesse que ou se torna mais autossuficiente ou poderá vir a ser devastada por um qualquer estratega com a escola e o calculismo de Putin. Mas antes disso, tem de procurar um líder e não parece haver nenhum à vista.
* Advogado