Julgou viver com um formigueiro dentro de casa e disseram-lhe para o afogar. Uma a uma, para que nada restasse daquela mole, enfileirada da cave ao telhado, mergulhava cada uma das formigas num tanque improvisado por um balde que ia deslocando casa adiante. Avançou de cima para baixo e, chegado aos alicerces, deu por si a contorná-los, rumo à rua. Como quem diz, rumo à parte soterrada da dita. Desamparado, o alcatrão precipitava-se-lhe terra dentro, formando pequenas crateras que faziam sobressaltar os carros e cair as pessoas. Quando chovia, formavam pequenos charcos que as formigas evitavam na fuga à sentença de morte que era permanecerem no mesmo sítio por muito tempo. Às vezes, ouvia uns baques provocados pelas pedras a bater na borracha. Outras vezes, ouvia um tilintar de areia a bater no metal. Indiferente ao ruído que nada de bom agoirava, prosseguiu o extermínio formicídeo. As pedritas mais aguaçadas rendilhavam o que lhes caía em sorte, as formigas mais ágeis escapuliam-se por onde podiam e ele escarafunchava.
A cada chuvada, cresciam os charcos que, aproveitando imperfeições de ferrugem e picotados de plástico, logo aprendiam a esvaziar-se tubagens adentro em direção à torneira de alguém. Em tom ameaçador, a água deu em aí vir a cheirar a lodo ou coisa que o valesse. Coisa muito desagradável para os sentidos, pouco habituados a este matiz, nada odorífero e de cor muito parda, da água de beber.
A meio da empreitada inebria-se com os vapores alcoólicos libertados pela respiração de algumas formigas, recém-chegadas de uma festa, ainda a arrastar clarões efémeros de foguetes esbranquiçados. Nada que lhe esmoreça a empreitada ou corrija as consequências da mesma. Cada vez mais salamurdo e persistente, esquece o balde que fez fazer de tanque, as formigas que perseguia e a casa que julgou invadida por elas ao cair, desamparado, na clareira sem alcatrão, charcos ou tubos de qualquer espécie. Ofuscado e meio ébrio, cambaleia, em elipses defeituosas, à procura de uma referência que o ajude a sair dali. Os pássaros, na copa das árvores circundantes, sempre a abanar as penas das asas sem sair do sítio, atingem-no com grasnidos agudos que, em nada, o ajudam. As formigas, do campo, porque às de casa já lhes acabou com a sorte, desatam a dirigir-se-lhe, ameaçadoramente, decididas a arranhá-lo por onde pudessem. Perguntou-lhes se vinham pelas outras ou se por coincidência de lugar. Nenhuma se deu ao trabalho de lhe responder. Mas terá sido mais por falta de palavras do que de consideração. Toda a gente sabe que as formigas não falam! Entre uma arranhadela e outra, deu pela presença de outros bichos que o fitavam por entre as ervas semeadas de folhas atiradas lá de cima pelas asas dos pássaros a abanar. Quando percebeu que nenhum lhe responderia, já tinha passado tempo suficiente para voltar à casa de partida. Desta vez, não haveria de existir formigueiro que o descarrilasse, pensou ao meter pés ao caminho. Nem afogamentos, perfurações, charcos ou ferrugem que lhe turvassem as intenções ou a água das torneiras.
Efabulações de fim de semana
“A cada chuvada, cresciam os charcos que, aproveitando imperfeições de ferrugem e picotados de plástico, logo aprendiam a esvaziar-se tubagens adentro em direção à torneira de alguém.”