Sociedade

«Nem com a minha mãe deixo a minha filha»

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Escrito por Efigénia Marques

Cátia Silva foi aos 2 anos elemento principal de um julgamento que chocou os guardenses no início da década de 90. Hoje, quer confrontar o passado.

Cátia Silva tinha dois anos, em 1991, quando foi deixada pelos pais, juntamente com as irmãs de 5 e 15 anos, aos cuidados de um casal amigo, Vítor e Dulce, na Guarda. Os progenitores foram trabalhar para França, inicialmente por três meses, porque «tinham muitas dívidas», mas ao fim de um mês a filha mais nova do casal já estava a «adoecer por falta de comida e higiene», recorda.
Agora com 34 anos, Cátia Silva continua a questionar o porquê de ter sido «maltratada, eletrocutada… Chegaram a pôr-me as mãos cheias de fios elétricos… Vendavam-me os olhos e a minha irmã do meio era obrigada a assistir a tudo. Até me trancaram numa casa-de-banho com uma cadela para comer os restos com ela», lembra em declarações a O INTERIOR. As memórias desses dias violentos sucedem-se na sua cabeça e dificilmente serão esquecidas. «O casal pedia à minha irmã mais velha e aos próprios filhos para me baterem com ortigas nas feridas para que a dor passasse, mas apenas inflamava», refere. A mãe «ligava todos os dias», mas nunca conseguia falar com a irmã do meio. Desconfiados e preocupados, os pais de Cátia ainda tentaram levar as filhas para a França, mas «o casal com quem estávamos mandou a carrinha para trás e não nos deixaram ir ter com os meus pais», numa altura em que Cátia Silva já estava «entre a vida e a morte… Eu era já só pele e osso… muitos maus-tratos e muito pouca comida», recorda.
Foi já num estado de saúde bastante crítico que terá sido deixada no hospital: «O casal enrolou-me num lençol branco e deixou-me à porta. Por sorte quem lá trabalhava era a minha tia, que ainda deitou o lençol para o lixo, mas ouviu um guincho, voltou atrás e reconheceu-me. Foi ela que ligou para a minha mãe e lhe disse para vir imediatamente para Portugal se quisesse ver-me viva porque eu ia morrer», narra Cátia Silva. Os pais não pensaram duas vezes e fizeram-se à estrada de regresso à Guarda. Foi assim que terminou o calvário de uma menina de dois anos, que pouco depois seria a peça-chave de um caso judicial que abalou os alicerces da Justiça e cuja sentença causou revolta popular na cidade, ao ponto do tribunal ser sido e apedrejado por guardenses em fúria.
Cátia Silva ouviu falar dos distúrbios e do descontentamento das pessoas. «Cresci sempre atormentada, sempre a pensar nisto», confessa agora, acrescentando que sofre de «pânico», não confia em ninguém e decidiu contar a história porque para ela ainda não acabou. «Eles já foram condenados, fizeram a vida felizes e contentes… Mas a minha vida foi uma tortura. A minha mãe não ganhou nada com este caso, não houve justiça suficiente. O Vítor foi condenado a 3 ou 4 anos de cadeia, enquanto a mulher teve apenas um», lamenta-se. Trinta e dois anos depois, Cátia Silva afirma que viveu «em sofrimento», sentimento que quer resolver confrontando Dulce. «Ela vive na Guarda, na mesma rua que eu e eu não consigo respirar sabendo que está tão perto de mim. Quero estar frente-a-frente com ela, não para lhe fazer mal, mas para perguntar como se tem sentido todos estes anos. É uma pessoa com filhos e netos», afirma, dizendo que as três irmãs nunca mais voltaram a falar do assunto. «A minha mãe dizia-me apenas que nunca poderia ser mãe porque poderia morrer se engravidasse», conta.
Passou por várias cirurgias na infância e o que é certo é que atualmente é mãe de uma menina «perfeita» de 6 anos. Quando a filha crescer «vai saber a história da mãe. Não para se assustar, mas para conhecer a realidade. Não deveria fazer parte, mas nas notícias “acontece sempre aos outros” e desta vez foi comigo. Mas há casos felizes… e o meu é um deles», sublinha a guardense, para quem «há que ter atenção à confiança que damos aos outros». Cátia Silva repete a O INTERIOR que não confia «em ninguém» e depois do que viveu nunca deixou a filha com ninguém, «mesmo tendo passado por dificuldades». «Nem mesmo com a minha mãe eu deixo a minha filha», garante.
«Sei que foi embora por trabalho, porque tinha muitas dívidas, mas não era motivo para deixar três filhas para trás. Não a quero julgar, só que cresci a pensar de maneira diferente porque foi comigo que isto aconteceu», reconhece Cátia Silva. E foi por crescer a pensar na sua experiência traumatizante que decidiu procurar Dulce para ter respostas que há tantos anos procura.

Os guardenses revoltaram-se

O caso das três irmãs que ficaram à guarda de um casal da cidade correu as bocas do mundo e fez as manchetes dos jornais. Um mediatismo que se sentiu às portas do Tribunal da Guarda no dia 11 de novembro de 1991, cujas janelas chegaram a ser apedrejadas pela população em fúria pela sentença proferida pelo coletivo de juízes que julgou o caso. Dos arguidos, Vítor tinha sido condenado a 6 anos e 6 meses de prisão, mas beneficiou de um perdão de 13 meses devido a uma amnistia, descontando 15 meses já cumpridos em regime preventivo, tendo portanto de cumprir 4 anos e dois meses de prisão. A arguida, Dulce, inicialmente condenada a 20 meses de prisão, viu a pena reduzida a 1 ano de cadeia também perdoada devido a uma amnistia.
As penas decididas pelo Tribunal foram, para os guardenses, demasiado leves para os crimes imputados, segundo os relatos então recolhidos pelos jornalistas. O casal estava acusado de pedofilia, maus tratos e atentado ao pudor agravado com ofensas corporais na pessoa da criança de dois anos que lhe estava confiada. «O caso passou a ser acompanhado a par e passo pela opinião pública e, na leitura da sentença, o juiz autorizou as duas rádios da cidade, a Rádio Altitude e a Rádio F, a transmitir em direto», lembra António Sá Rodrigues, à data jornalista do Altitude. «À medida que a leitura da sentença ia sendo feita, as pessoas desagradadas com o que ouviam começaram a concentrar-se no exterior do tribunal», acrescenta, sublinhando que os populares eram tantos que as forças policiais foram obrigadas a intervir, «mas até o gradeamento do Tribunal foi derrubado e os vidros partidos pelo arremesso de pedras».
O INTERIOR contactou os advogados envolvidos no caso, José Martins Igreja e Vítor Lavajo, mas não quiseram prestar declarações.

Sofia Pereira

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Efigénia Marques

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