Apenas quatro meses depois dos incêndios em Pedrogão Grande não parecia possível que o cenário desolador se repetisse. A 19 de outubro de 2017, poucos dias após a tragédia que devastou a região Centro, O INTERIOR noticiava «22 ocorrências de grande dimensão» no distrito da Guarda. No combate ao fogo os meios foram «insuficientes» e obrigaram populares a defender como podiam as suas propriedades. As comunicações foram afetadas, cortaram-se estradas e ferrovias e «nem chuva nem aviões vinham para travar os fogos que fustigavam a Beira Interior». As chamas assolaram freguesias na Guarda, Fornos de Algodres, Sabugal, Seia e Gouveia, mas foram estes dois últimos os municípios que mais sofreram as consequências, no distrito.
O tempo passou mas as marcas da tragédia ficaram. Para quem sofreu na pele o flagelo dos incêndios a recuperação faz-se a custo, um custo que, nalguns casos, padece de apoio estatal. Mais uma vez, a força da população foi determinante para ultrapassar as adversidades, tal como aconteceu durante os dias de combate às chamas.
Em 2017, no rescaldo da tragédia, mais do que lamentar os estragos era necessário reconstruir e reerguer as comunidades. Para isso o Governo disponibilizou 60 milhões de euros do Orçamento de Estado para reconstruir habitações. Foi lançado o Programa de Apoio à Reconstrução de Habitação Permanente (PARHP) pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), que abriu candidaturas até 31 janeiro de 2018.
Volvidos dois anos, «já foram transferidos para as famílias e para as empresas de construção cerca de 53 milhões de euros», segundo a CCDRC, que informa ainda que dos 1.335 pedidos de apoio submetidos para reconstrução de habitações foram aprovados 822. Segundo esta entidade, «isto significa que há 487 pedidos de apoio que não tiveram acolhimento no programa, o que corresponde a cerca de 36,5 por cento dos pedidos». Os motivos apontados para o indeferimento prendem-se com factos como as habitações em causa não serem utilizadas «de forma permanente», de existirem «ilegalidades do ponto de vista urbanístico», que «não são passíveis de legalização», o facto da «titularidade/ propriedade das habitações não estar regularizada» e ainda por existirem imóveis que «já estavam devolutos à data do incêndio», justifica a CCDRC.
No que respeita aos pedidos efetivamente aprovados, estão neste momento concluídos 792, restando ainda 30 imóveis que se encontram em fase de execução, relata a mesma entidade. Ana Abrunhosa, presidente da CCDRC, disse à agência Lusa que, das 30 casas que estão ainda em reconstrução, uma é da responsabilidade desta entidade e 29 são da responsabilidade das famílias, que foram incluídas no programa de apoio apenas em 2019. Em Seia foram aprovados 37 pedidos de reconstrução de habitações permanentes, estando já concluídos 34, segundo a CCDRC. Já em Gouveia registaram-se 12 pedidos aprovados no âmbito do PARHP, todos já finalizados.
Empresários afetados queixam-se de apoios «insuficientes»
No caso das empresas, o programa REPOR – Reposição da Atividade Económica, descrito pela CCDRC como um «Sistema de Apoio à Reposição da Competitividade e Capacidades Produtivas» abrangeu 12 empresas sediadas em Seia e três no concelho de Gouveia. Os apoios abrangeram empresas relacionadas com o setor automóvel, restauração, construção civil, farmácia e têxtil. Nestes municípios o financiamento aprovado – segundo relatório publicado a 2 de outubro pela CCDRC – abrange valores entre cerca de 1.500 euros até perto de 230 mil euros, perfazendo um total (no conjunto das empresas aprovadas) que ultrapassa o milhão de euros. Dos valores aprovados só foi paga uma percentagem, restando ainda quase 250 mil euros de financiamento atribuído que a Comissão não pagou. Em Seia há mesmo duas empresas que não receberam qualquer pagamento (à data de publicação do relatório).
Agostinho Pais, gerente da empresa de comércio e reparação automóvel AP Pais, em Seia, relata que de cerca 80 mil euros de apoios que lhe foram destinados recebeu pouco mais de 30 mil – situação confirmada pelo relatório da CCDR relativo ao mesmo programa de apoios. «Tive prejuízos da ordem do meio milhão de euros», relativos à destruição do imóvel, equipamentos e viaturas de clientes que se encontravam no local, adianta o empresário. «Na altura havia muitos incentivos. Inscrevi-me nos apoios da CCDRC do programa REPOR, mas, como estava previsto receber valores relativos aos seguros que a empresa tinha, apenas me foi aprovado um apoio a rondar os 80 mil euros, dos quais só recebi ainda cerca de 30 mil», revela. Agostinho Pais confirma ter recebido cerca de 160 mil euros de seguradoras, com as quais foi «obrigado a negociar durante cerca de nove meses para conseguir o pagamento», mas explica que este valor, que estaria destinado à reconstrução do imóvel perdido, foi utilizado para indemnizar os proprietários de 33 viaturas de clientes que arderam. «Tudo o que tinha e não tinha investi nesta empresa. Se não tivesse um fundo de maneio estaria ainda mais à rasca do que estou hoje», assume o empresário.
Para manter o negócio, Agostinho Pais relata que nunca deixou de pagar o salário aos seus dois colaboradores, apesar da empresa ter estado sem laborar durante ano e meio. «Atualmente, há algumas fiscalizações a terrenos florestais, mas parece que as pessoas começam a esquecer-se da tragédia, pois já existem terrenos privados onde se nota a falta de limpeza», lamenta. O proprietário da AP Pais sublinha que «só quem passa pela situação é que tem verdadeira noção dos estragos», mas lamenta a atitude «insuficiente» do Governo. «Se soubesse o que sei hoje – e tivesse noção dos problemas que teria para conseguir apoios estatais –, nunca teria avançado para a reconstrução da empresa», agora localizada no parque industrial da Abrunheira, em Seia.
Para este local mudou-se também a A.S. Brito, que opera na área de veículos e pneus. A empresa que «ardeu na totalidade» nos incêndios de outubro ressurgiu das cinzas oito meses após a tragédia. «Comprámos um terreno em lote camarário com dinheiro do seguro e do nosso proprietário e abrimos portas», explica Cristina Simões, gerente da empresa. A responsável fala em prejuízos «na ordem dos 500 mil euros», que foram assumidos quase integralmente pela empresa. «Os apoios não foram suficientes de forma alguma», lamenta, referindo-se aos cerca de 80.500 euros atribuídos no âmbito do REPOR, dos quais receberam até à data perto de 76 mil.
«A última parte dos apoios está dependente da vistoria, que ainda não foi realizada», acrescenta Cristina Simões. Apesar da recuperação bem sucedida da empresa, que até aumentou o número de colaboradores desde a reabertura (passou de quatro a cinco empregados), a gerente lamenta a postura das entidades competentes perante as empresas afetadas pelos fogos de outubro de 2017. «Nunca procuraram saber quais as dificuldades que estávamos a enfrentar. Avançámos por nós próprios, caso contrário não teria sido possível reerguer o negócio», garante.
Sandomil (Seia): «Houve bastantes injustiças nos processos de obtenção de apoios»
As condições de elegibilidade do PARHP – como a necessidade de habitar no imóvel à data do incêndio – impediram a atribuição de financiamento público a alguns proprietários de casas ardidas. Este foi o caso de André Martins, presidente da Junta de Freguesia de Sandomil (Seia), que viu os seus planos de futuro arder com a floresta.
À época da tragédia, o autarca tinha comprado uma habitação há três meses, que estava a requalificar para viver e transformar em negócio. «Quando aconteceu o incêndio a casa encontrava-se em fase de reconstrução. Estava a fazer algumas melhorias para poder transformá-la num estabelecimento de alojamento local onde eu planeava ser anfitrião», recorda. André Martins explica que apesar de ainda não viver na habitação naquela altura, esta já era oficialmente a sua morada fiscal, facto que se tornou irrelevante na obtenção de apoios. «Tive um prejuízo na ordem dos 200 mil euros, mas pedi um apoio de apenas 50 mil, pois o restante seria assegurado pela companhia de seguros no âmbito do crédito à habitação que contraí», refere o edil.
O presidente da Junta explica que, apesar do processo de obtenção de apoios ter sido aprovado inicialmente, o acesso ao financiamento foi depois cortado. «A CCDRC procedeu mal, a autarquia também fugiu um pouco à questão… Houve bastantes injustiças nos processos de obtenção de apoios», garante. «Aqui na freguesia arderam duas casas, a minha e a de outra pessoa, mas só a minha não beneficiou de apoio estatal para reconstrução», afirma André Martins, segundo o qual a “Villa Alzira” – nome do alojamento local que reconstruiu autonomamente e que abre portas a 26 de outubro – foi «um sonho que foi atrasado dois anos, mas que não ficou destruído».
Em Folgosinho “os filhos da terra” associaram-se para reflorestar
Nasceu logo após o flagelo: a 17 de outubro de 2017, a Folgonatur, associação sem fins lucrativos criada em Folgosinho (Gouveia), mostrava a vontade de contrariar o cenário cinzento e desolador deixado pelas chamas.
Desde que foi criada até ao presente já foram plantadas cerca de 29 mil árvores, fruto do trabalho voluntário da população residente e de “filhos da terra”, que, apesar de viverem noutros locais, não perdem a determinação de requalificar o espaço onde nasceram. A associação conta com 103 associados e desenvolve ações de reflorestação sobretudo aos fins de semana, ou épocas festivas que permitem atrair mais voluntários. «É complicado, pois, tal como eu, a maioria dos que se dedicam mais afincadamente a esta causa não residem na freguesia», explica António Tadeu, o presidente desta associação, que vive e trabalha no Porto mas participa na limpeza e reflorestação de Folgosinho sempre que possível.
«Há uma área de 5.500 hectares de terreno, sendo que 3.000 hectares são baldios e é aí a nossa principal área de atuação», explica o dirigente da Folgonatur. O responsável afirma que a falta de meios e de maquinaria são as grandes dificuldades que se colocam à atuação da associação: «As ações de limpeza, em particular, tornam-se pouco eficientes apenas com recurso a trabalho braçal», refere. Outra agravante é o facto das «populações que aqui residem, como acontece em todo o interior, estarem envelhecidas e é óbvio que não podemos exigir a esta faixa etária a mesma consciência ambiental que possuem as gerações mais jovens», acrescenta António Tadeu. Apesar de ter alguns apoios logísticos da Junta de Freguesia, financiamento do grupo Montepio e colaboração da comunidade de emigrantes de Folgosinho nos Estados Unidos da América, o presidente afirma que «o grosso do trabalho de limpeza que é necessário fazer deve ser responsabilidade do Estado» por exigir equipamentos que a associação não possui.
Carlos Filipe Camelo: Disponibilidade de apoios «está aquém do que é a necessidade»
A disponibilidade dos apoios para a recuperação das perdas que decorreram dos fogos de outubro de 2017 «está aquém do que é a necessidade». Quem o diz é Carlos Filipe Camelo, presidente da Comunidade Intermunicipal Beiras e Serra da Estrela e autarca de Seia que, apesar disso, afirma concordar com as afirmações do Presidente da República, que sublinhou que as populações tiveram resposta às suas necessidades a velocidades diferentes.
O edil refere que, no concelho de Seia, foram submetidos ao Programa de Apoio à Reconstrução de Habitação Permanente (PARHP), da CCDRC, «29 processos de perda total de habitações», dos quais 15 foram já concluídos e «nove não chegaram a ser executados». Os restantes cinco encontram-se em situação de execução e/ ou análise do processo. Relativamente a situações de perda parcial de habitação o concelho submeteu 27 casos ao PARHP, sendo que apenas 15 beneficiaram de apoio. Carlos Filipe Camelo adianta que em muitos casos «não foram reunidos todos os requisitos exigidos pela CCDRC para aprovação», o que explica o número de habitações que não receberam qualquer apoio.
Além da recuperação de imóveis, o autarca afirma que a prevenção de novas situações de incêndio tem sido uma prioridade do município. «É impossível às autarquias cumprir os prazos» para limpeza de matas, em especial por incumprimento de proprietários, alerta, ressalvando que o concelho serrano «tem investido significativamente em equipamentos» para manutenção e limpeza de matas e na contratação de empresas especializadas.
Bombeiros de Seia: «Temos cada vez menos recursos humanos»
Os fogos que deflagraram em vários locais, com poucas horas de intervalo, dificultaram o combate às chamas pelos muitos bombeiros envolvidos. Virgílio Borges, comandante dos Voluntários de Seia, afirma que, na data da calamidade, «todos os recursos foram postos no terreno. Não sei o que se podia ter feito de diferente, pois a dimensão dos incêndios fez perder o controlo da situação».
Apesar das consequências registadas, o responsável afirma que «ficámos satisfeitos ao colocar as pessoas em lugares seguros e termos privilegiado a vida humana. Em relação aos bens materiais fizemos o que pudemos…». Passados dois anos, os recursos humanos disponíveis na corporação são cada vez menos e são consequência, mais uma vez, dos efeitos da desertificação do interior do país. «Os meios que temos hoje, a nível de equipamentos são sensivelmente os mesmos – apenas substituímos algumas viaturas –, mas a nível de recursos humanos são cada vez menos», lamenta o comandante, segundo o qual os bombeiros de Seia perderam cerca de 12 operacionais desde então. «Penso que a situação se vai agravar, pois não temos nada a oferecer aos nossos jovens» na região, alerta. Virgílio Borges sublinha que aos voluntários «é pedido muito mais do que combate aos fogos», aludindo o apoio prestado a doentes em tratamento, doenças súbitas e acidentes onde são chamados a intervir. Além disso, o comandante lamenta o facto de, no caso dos bombeiros, «não termos nada a oferecer senão trabalho. Os jovens partem para outros locais porque têm de o fazer».