Veríssimo Serrão, in memoriam

Escrito por João Mendes Rosa

Há momentos em que desapetece a existência. O próprio metabolismo se descompraz numa submissão vegetativa à ilógica da vida e sentimos, no perpassar célere de tantíssimas memórias, que pertencemos já a esse estado etéreo onde habitam agora aqueles que já não fazem parte da nossa visibilidade física. Na verdade, tenho já «do outro lado do caminho» – como diz o poema de Santo Agostinho – a maior parte daqueles que perfaziam o meu melhor universo emotivo, aqueles que, apesar disso, cadenceiam ainda as batidas do coração. Na desfiada amena deste caminho paralelo a essoutro – que deverá ser incomensuravelmente mais belo – eis que uma notícia ruge dentro de nós como um trovão. Suspende-nos! Interrompe em nós as mais elementares propriedades neurológicas: as pálpebras cerram-se, a face submerge, o corpo cinge-se a uma reactividade minimal e desejamos ficar nesse registo vegetal horas a fio…

A passagem do Prof. Veríssimo Serão para “outro lado do caminho” estava há algum tempo antevista pela ciência, mas a poética da sua vida prometia-ma impossível. E como pio descrente das leis da Física e da Química – a minha querida Profª Raquel Morgado diagnosticou-me muito cedo essa deformação (que nunca superarei aliás) – continuo a acreditar que está ainda por aqui: sinto-o ao remexer cartas, manusear textos datilografados, fotografias. Aguardando instintivamente o toque do telefone e logo depois o vozear sonoro, inconfundível…
Recordo o mestre, o amigo, o ser humano excepcional, o espírito cultíssimo, o trato de gentil-homem, o anfitrião incomparável das tardes escalabitanas entre montanhas de livros e montanhas de livros – a minha orografia predilecta – e a inúmera gataria da sua farta biblioteca. Os convívios nos terraços panorâmicos do Hotel Mundial, em Lisboa, as sessões da Academia Portuguesa de História… Acompanhou-me entusiasticamente no Conselho Editorial dessa aventura que foi a revista de História, Museologia e Arqueologia que fundei em 2003 e coordenei durante quase 13 anos (a premiada “EBVROBRIGA”) e logo a seguir no prefácio do meu “História Cronológica do Fundão” (2005) a apresentação pública que fez do livro, as apostilas às minhas incursões históricas ao mundo tenebroso da Carbonária, do Regicídio de 1908. Recordo o carinho que dispensava aos meus filhos, a cavaqueira multitemática, as atenções sem-fim, as cerejas em Maio…
Lamento os pequenos “mas” (e terão que ser necessariamente minúsculos esses “mas”) que alguns têm apensado aos elogios a que afinal não se podem esquivar – Joaquim Veríssimo Serrão foi, sem qualquer dúvida, um dos nossos maiores historiadores de sempre.

Confrangem-me os que o rotulavam e rotulam de afecto ao regime salazarista, sobretudo se esses estigmas partem de quem tem obrigação de ser isento. Serrão nunca foi salazarista: eu mesmo lhe ouvi críticas violentíssimas ao Celibatário de Santa Comba. Enquanto estudante em Coimbra, etiquetado de “perigoso” pela PIDE, o jovem Joaquim Veríssimo Serrão envolveu-se activamente no MUD apoiando Francisco Salgado Zenha na tempestiva e bela direcção da Associação Académica de Coimbra em 1944 e, quatro anos mais tarde, esteve entre os estudantes que redigiram os famosos novos estatutos que punham fim às ingerências não-estudantis no mesmo órgão associativo, subscrevendo ainda o manifesto que apelava ao voto naquele documento. Acreditou (como muitos outros, infelizmente) que Marcelo Caetano seria a solução para o regime, isso sim, e depois manteve-se leal ao seu amigo. Era, para ele, uma questão de princípios. A História ensina-nos bem que nos escaninhos dos factos há pormenores que escapam a uma análise mais normativa: recorde-se a amizade entre Primo de Rivera e Lorca, por exemplo…

Seja como for, Joaquim Veríssimo Serrão não era um preconizador do Fascismo nem nunca apoiou as arbitrariedades do regime ou qualquer acção repressiva sequer. E além do mais, manteve ao longo da vida uma postura de tanta elevação que soube sempre cultivar as amizades sem olhar a credos ou ideias.
Quando Saramago morreu fez-se o elogio das suas enormes qualidades enquanto escritor maior e criativo invulgar – eu próprio estive entre eles. Não se falou – e bem! – do apoiante assumido do Estalinismo – que sacrificou milhares de vidas, como se sabe –, nem dos episódios de má memória reveladores da sua inexorável vindicta durante o período revolucionário. São os tais “dois pesos e duas medidas” de que este país é vezeiro.

Veríssimo Serrão, além de historiador de primeiríssimas águas foi, por muito que para alguns o custe aceitar, um ser humano completo; de uma integridade admirável. E no seu carácter havia lugar para uma faceta talvez pouco conhecida: o seu fino e inteligente sentido de humor. E não resisto a deixar ao leitor este episódio que o atesta: há alguns anos, tendo eu ido na companhia do meu filho Francisco João, este, ao brincar com um desses felinos domésticos que pululavam pela sua biblioteca, atirou ao chão o retrato autografado do rei de Espanha. Perante o meu confrangimento, sossegou-me de imediato:
– Deixe lá, afinal o miúdo conseguiu aquilo que muitos em Espanha gostariam de fazer e não conseguem: derrubar o rei!

*Escritor

** O autor escreve com a grafia anterior ao AO de 1990

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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