Uma cidade, para além dos seus cartazes monumentais e artísticos mais emblemáticos, pode projetar-se por múltiplas referências, nem sempre devida e objetivamente valorizadas. Desde logo pela identificação com personalidades, nascidas ou ligadas ao território urbano, ainda que com vínculos afetivos de diferente graduação.
Vem isto a propósito da recente passagem do 324º aniversário do nascimento de uma das figuras mais relevantes da ciência e da cultura europeias do século XVIII: Ribeiro Sanches. Um nome assinalado na toponímia guardense (ainda que com uma diminuta e desproporcionada placa…), numa artéria transversal da Rua Dr. Francisco dos Prazeres e que liga esta à Rua Pedro Álvares Cabral e Monsenhor Alves Brás, permitindo também a circulação em direção à Rua António Sérgio.
Nascido em Penamacor, a 7 de março de 1699, no seio de uma família de cristãos-novos, António Nunes Ribeiro Sanches viveu na Guarda, no período da adolescência, após ter concluído a formação escolar básica.
Nesta cidade terá estudado música e, em particular, aprendeu a tocar cítara, seguindo as orientações paternas; alguns dos seus contactos citadinos possibilitaram-lhe a leitura de obras que o enriqueceram culturalmente, nomeadamente trabalhos de Damião de Góis.
Aos 16 anos foi estudar para Coimbra onde, mais tarde, cursou Direito que, contudo, reconheceu não ser a sua vocação; o ambiente estudantil da cidade do Mondego provocou-lhe algum desagrado e em novembro de 1720 matriculou-se na Universidade de Salamanca (Espanha); aí estudou Medicina e granjeou a estima de vários mestres; foi mesmo convidado para ali ficar como assistente. Naquela cidade espanhola viveu calmamente, sem a preocupação de o identificarem como cristão-novo.
No período em que estudou em Salamanca, Ribeiro Sanches passou várias épocas de férias na Guarda, tendo aqui praticado o exercício da medicina com um clínico desta cidade, seu amigo. Concluído o curso, em 1724, foi trabalhar para Benavente. Os seus contactos familiares deram-lhe uma maior perceção da atividade, do peso e influência da Inquisição, a que foi denunciado como cristão-novo; este facto esteve, igualmente, na origem do impedimento de nomeação oficial como clínico naquela localidade.
Admite-se que esta situação, e o medo de vir a ser alvo da Inquisição, o tenham levado a sair de Portugal nos finais de 1726. Terá partido, por via marítima, em direção a Génova. Em Itália frequentou, durante algum tempo, a Universidade de Pisa, visitando depois Montpellier e Londres (onde deu aulas e exerceu Medicina).
Mais tarde, acompanhado por um irmão (que ficou a estudar cirurgia em Paris), saiu para Bordéus e daí para Leiden (Holanda). D. Luís da Cunha, representante de Portugal em Haia, intercedeu a favor de Ribeiro Sanches junto de um influente ministro de D. João V, sem nenhum acolhimento. Frequentou, a partir de 1730, a Universidade de Leiden onde recebeu ensinamentos de Bernhard Siegfried Albinus Hieronymus, David Gaubius e Herman Boerhaav. Este último terá contribuído para a ida de Ribeiro Sanches para a Corte de Moscovo, onde chegou em outubro de 1731.
Nomeado médico do Senado e da cidade de Moscovo, foi transferido três anos depois para os serviços do exército russo; em 1737 encontrava-se já em São Petersburgo, como clínico do Corpo de Cadetes, uma estrutura de ensino e formação destinada à nobreza russa.
Ribeiro Sanches ingressou, por essa altura, na Academia das Ciências de São Petersburgo, sendo nomeado em março de 1740, médico da Corte e posteriormente segundo médico da Regente Ana Léopoldovna e do, ainda, jovem Imperador Joannn Antonovič, sendo muito apreciado nos círculos do poder russo.
Um ano depois, Isabel Petrovna (filha de Pedro o Grande) passou a dirigir os destinos do império e Ribeiro Sanches foi, igualmente, seu médico, bem como de Catarina II, que curou em 1744, quando esta tinha apenas 15 anos; facto que a futura czarina não esqueceu.
Em 1747, invocando problemas de saúde, Ribeiro Sanches pediu a demissão das suas funções.
A Imperatriz Isabel Petrovna distinguiu-o com um certificado de bons serviços e Academia Imperial das Ciências, nomeando-o membro honorário. De acordo com alguns biógrafos, esta repentina partida terá sido originada por alguma intriga na corte czarina que avivou a sua ligação judaica.
Após passar por Berlim, dirigiu-se a Paris onde passou a residir e a colaborar com os vultos mais eminentes do Iluminismo, escrevendo as suas principais obras: “Dissertation sur la Maladie Vénérienne” (1750), “Tratado da Conservação da Saúde dos Povos” (1756), “Cartas sobre a Educação da Mocidade” (1760), “Método para Aprender e Estudar a Medicina” (1763), “Mémoire sur les Bains de Vapeur en Russie” (1779).
Foi, até à sua morte, interlocutor de imensas figuras consideradas expoentes máximos da vida cultural e científica europeia dessa época, sem ter tido a possibilidade de encontrar as condições para regressar a Portugal.
Ribeiro Sanches, um dos intelectuais portugueses que mais se distinguiu além-fronteiras e cuja vida passou pela mais alta cidade de Portugal, faleceu a 14 de outubro de 1783. Esta é, sem dúvida, uma figura que bem se pode associar a uma Guarda culta e da ciência, merecendo adequado estudo e divulgação.
Uma figura relevante da ciência europeia do século XVIII
“Uma cidade, para além dos seus cartazes monumentais e artísticos mais emblemáticos, pode projetar-se por múltiplas referências, nem sempre devida e objetivamente valorizadas.”