Passados 131 anos sobre a matrícula da primeira mulher na universidade em Portugal, em pleno ato de contrição da Igreja (incompreensivelmente, só da Católica), vêm a público as queixas de alunas universitárias, supostamente, vítimas de assédio sexual por parte de alguns docentes.
Claro que ao largo das duas instituições, religiosa e académica, havia desde há muito relatos, bastante verosímeis, sobre prevaricações de clérigos e professores. No entanto, vá lá saber-se porquê, por aí permaneceram até aos dias que correm, levando-nos a crer na forte possibilidade de que quem manda, numa e noutra instituição, muito deve ter contribuído para que assim acontecesse, ao tolerar algo que devia assumir como intolerável. O que se tolera adapta-se ao que não se aprova, ao que, podendo ser proibido, se decide, discricionariamente, tolerar. Quem tolera, à semelhança de quem assedia, fá-lo sempre a partir de uma posição de poder que determina o que é ou não tolerável, o grau de aceitação e a sua integração. Do convívio, inescrutável, da tolerância para com o assédio nada de bom se poderá esperar, mas dar de barato que bispo e reitor ignoravam o que se passava dentro de portas também não ajuda à missa. Desde logo, porque menorizando ambos e, por arrastamento, as instituições tuteladas não será nada aconselhável, por tanto gostarmos de acreditar que frequentá-las será uma forma de nos sobrelevarmos. Quem nunca se sentiu crescer ao pensar na reputação de boa pessoa que a assiduidade dominical lhe trará, ou na de pessoa sábia que um diploma costuma outorgar? Ora, tanta “credibilidade” não pode, nem deve, perigar pelo facto de a das próprias instituições serem postas em causa por chefes burros. Contudo, não sendo burros, porque se apercebem muito bem do universo que chefiam, toleram nele coisas que deviam proibir, mostrando o quão baixo se consegue descer, em nome das aparências.
Num tempo em que já ninguém acredita na perfeição, coisa mais incompatível, com a verdade proclamada por Igreja e Universidade do que a aparência será tão difícil de achar como outra explicação para o que aí vai acontecendo. Além de, segundo a lei das probabilidades, nos dever alertar para ocorrências similares em todas as outras dimensões cívicas e sociais. Por mais indignados que nos apresentemos perante cada denúncia, se não deixarmos de ser tolerantes com qualquer tipo e nível de irregularidade compactuaremos sempre com todos os autores destes e outros atos igualmente condenáveis em algum nível. Sempre que toleramos episódios de assédio, sexual, moral ou outro, de violação da privacidade, de identidade ou de qualquer outra índole, tornamo-nos cúmplices de quem os protagoniza. Dependendo da gravidade dos factos e das circunstâncias, uns mais cúmplices do que outros, evidentemente. Quando conseguirmos interiorizar isto, talvez deixemos de ser tão lestos a tolerar aquilo que, sendo proibido, achamos ter pouca ou nenhuma importância, conforme o jeito que nos der. Até porque, em termos de danos pessoais e individuais, em democracia, nunca a intolerância foi tão nociva como as consequências, mais ou menos imprevisíveis, dos caprichos da tolerância e da volubilidade, reconhecida, dos tolerantes.
Tolerância muito pouco tolerável
“Num tempo em que já ninguém acredita na perfeição, coisa mais incompatível, com a verdade proclamada por Igreja e Universidade do que a aparência será tão difícil de achar como outra explicação para o que aí vai acontecendo.”