Num mundo ideal, todos conhecem os limites, as linhas vermelhas que para bem da segurança, própria e alheia, não devem ser ultrapassadas. Contudo, todos sabemos que é da natureza humana sabotar as intenções do próximo. Uns por divertimento, outros por mera estupidez, de uma maneira ou outra, acabamos todos por contribuir para que não haja mundo ideal nenhum. Por causa disso mesmo, alguém se lembrou de inventar a Lei. A Lei é, assim, o mecanismo que nos protege, até de nós próprios, quando não distinguimos o bem do mal, o certo do errado e, não poucas vezes, obriga-nos a adotar comportamentos que deveríamos ter por nossa iniciativa. Já muito se tinha debatido sobre a importância dos cintos de segurança na proteção dos automobilistas, em caso de acidente, quando o seu não uso voluntário obrigou a que uma lei o determinasse. Fartos de saber que o fumo do tabaco era tão ou mais nocivo para os circunstantes como para os fumadores, continuámos a fumar nos cafés e, pasme-se, até nas escolas e hospitais. Foi preciso uma lei que proibisse tal prática para acabar com a nuvem de fumo em todos esses lugares. Numa altura em que é mais do que consensual que o uso generalizado da máscara protege do contágio por coronavírus, tem que ser, de novo, a Lei a salvar-nos da proclamada supremacia dos direitos individuais, novamente, defendida pelos reacionários do costume. Os mesmos que contestam, só porque sim, ou sabe-se lá porque outros anseios obscuros, a escolaridade obrigatória, enquanto vociferam contra as vacinas e o Código da Estrada. Será, porventura, aqui que a Lei revela razões que a razão média não alcança, porque em democracia, os legisladores são eleitos por maioria, mas continuarão a ter de se impor às minorias.
O que, por inerência de regime, é saudável por um lado e perverso por todos os outros. Será perverso quando, dependendo da qualidade do eco, ou falta dela, a imprensa e, principalmente, as redes sociais na Internet, se apropriam das dores das minorias para sugerir que o bom senso é autoritarismo e as instituições estão todas decadentes ou capturadas por interesses. O que evidencia tanto a fragilidade da democracia, que damos em ter por adquirida, como a persistência do que a ameaça e julgávamos extinto. Desta feita, nuns casos por ignorância, noutros por preguiça, vai-se permitindo a submissão da Lei ao potencial retórico de qualquer um para a subverter, possibilitando que todos os seus princípios possam ser neutralizados ou subvertidos por rematados articuladores. Importa, portanto, seja através da Lei, da tal escolaridade obrigatória, ou, por paradoxal que possa parecer, através da própria imprensa, obstar a essa possibilidade com a maior firmeza e determinação. Assim, de repente, leis, instituições, escola e imprensa, parecem ser os melhores instrumentos de que dispomos para sobreviver como democracia e, mais importante ainda, como democracia europeia, a esta crise.