Policromático

«Ter ou não ter amigos pretos não garante nenhum tipo de salvo-conduto nas auto-estradas da boa-vontade»

Uma parte do mundo, talvez por estar fechada em casa a enlouquecer enquanto outros andam na rua a empobrecer, ganhou ultimamente uma fixação por cromatismos dérmicos. Ora é a pergunta “tem amigos pretos?”, ora de seguida, a afirmação da necessidade de “matar o homem branco”. Para não deixar o leitor amarelo de dúvida ou vermelho de raiva, acrescento de imediato que ambas as intervenções me parecem metonímicas. E um pouco idiotas. E já agora, perfeitamente legítimas de serem proferidas. (As duas últimas frases servem para que o leitor perceba que aqui se entende que a liberdade de expressão existe para permitir que a idiotice possa ser proferida. Aliás, há 16 anos que o Observatório de Ornitorrincos serve precisamente esse propósito, o de legitimar a idiotice. Muito especialmente, a própria).

Ter amigos pretos e matar homens brancos são, na verdade, duas faces da mesma moeda. Não uma daquelas cujo metal ainda brilha, mas uma das que já apresenta uma espécie de musguinho verde nas bordas. Ter ou não ter amigos pretos não garante nenhum tipo de salvo-conduto nas auto-estradas da boa-vontade. (É de propósito, esta repetição do hífen. É um sinal de pontuação que me faz falta, e que não quero perder por causa de um acordo luso-brasileiro mal amarfanhado). Matar homens brancos – mesmo que em forma de sinédoque ou metáfora – também não garante a ninguém o fim da estrada para a servidão. (Agora, estou baralhado com a minha própria metáfora porque a usei com o sentido marxista, mas é o título de um livro do liberal Hayek. Estava tentado a escrever que são as contradições de um intelectual, mas depois apercebi-me que estaria a cometer uma excessiva hipérbole, por isso atenho-me a uma afirmação menos estilizada e mais factual: são contradições).

Na ficção científica era habitual os extraterrestres serem verdes, às vezes azuis, provavelmente porque são cores pouco habituais em seres humanos. Em muitas histórias, os extraterrestres chegam à Terra com o propósito de a invadir e colonizar, e torna-se necessário expulsá-los e aniquilá-los. (Nesta parábola, os seres verdes são o homem branco ou o Sporting, conforme a mundivisão). Mas noutras, como por exemplo, na saga “Star Wars”, o universo é povoado de criaturas de todas as cores, tamanhos, línguas e pelugens. A distinção é estar alinhado com o Império ditatorial ou combater pela restauração da democrática República.

Esta forma contemporânea de procurar atingir a igualdade promovendo a segregação parece um pesadelo. O sonho de Martin Luther King era que as pessoas fossem avaliadas pelo seu carácter, não pelas suas características. Voltando à parábola da “Guerra das Estrelas”, o combate importante não é pela distinção da melanina, mas contra a uniformização do pensamento, a estatização do comportamento, e sobretudo, a generalização do medo.

Numa crónica com muitos parênteses, para alongar o texto (como me foi pedido), a nota final é esta: o mundo é tanto melhor quanto mais cores, mais figuras de estilo e mais sinais de pontuação viverem misturados. Experimentem-se hipálages vermelhas, anáforas beges, hífens entre parênteses, e acrescentem-se pontos e vírgulas. Isto só não é a “Utopia” do Thomas More, porque seria muito menos ordeira e mais divertida.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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