Pandemia 2020 – Olhar do Interior (da incerteza à confiança)

Escrito por José Valbom

«A coerência, continuidade, simplicidade da mensagem, tendo em vista o envolvimento dos cidadãos e sociedade e sustentabilidade ao longo do tempo, é a essência da intervenção»

«As doenças epidémicas não são acontecimentos aleatórios. …espalham-se ao longo das linhas de falhas desenhadas pela degradação ambiental, pela sobrelotação e pela pobreza» – Frank M Snowden (2019)

Esta é a verdade. Ontem nas múltiplas epidemias, hoje na Covid-19 – a Pandemia (11/03/2020-OMS) – e amanhã, que não tarda muito, numa outra.

A – Incerteza

No ocaso de 2019 irrompeu e alastrou por todo o mundo a Covid-19.

É o culminar da urbanização desenfreada com invasão e destruição do habitat animal, alterando a relação dos humanos com o mundo animal. A expulsão/ aniquilamento de espécies, reservatório natural, dissemina inúmeros vírus com capacidade de contaminar humanos.

Um mundo de cerca de 8.000 milhões, a maioria a viver em cidades densamente povoadas, interligados por rápidas (e frequentes) vias aéreas, faz o resto.

Um olhar rápido pelas últimas décadas, expõe-nos perante a crua realidade: um número crescente de doenças emergentes – 335 entre 1960 e 2004 –, a maioria de origem animal. A gripe H5N1, em 1997. Entre 2003 e 2016: surto de Gripe Aviária, SARS, MERS, Marburgo e Ébola. O virulogista Brian Bird sintetiza: «Vivemos agora numa era emergência crónica».

Em 2012 vários virulogistas previram uma epidemia com as características da Pneumónica de 1918/1919. Os distraídos, em 2020, ficaram surpreendidos.

Estas variáveis – vírus com potencial de agressão das vias aéreas, facilmente dissemináveis, pelas razões atrás enunciadas, e perante uma população sem imunidade, alastrou como fogo em pasto seco.

Tínhamos em março/2020 a preparação e experiência dos surtos anteriores. Tínhamos o estudo e análise de 1918/19. Na altura, e até janeiro/fevereiro 2021 (data previsível das primeiras imunizações), a intervenção assenta em 4 pilares:

1º Uso de máscara; 2º Distanciamento social (evitar a proximidade e afastamento de suspeitos e infetados (testagem); 3º limpeza, desinfeção e arejamento dos espaços de trabalho/convívio e 4º alinhamento e cooperação internacional para contenção da propagação e investigação e desenvolvimento de vacinas.

A complementaridade e justa medida da intervenção dos quatro vetores serão a receita do sucesso da intervenção até 2021.

A hipervalorização de um dos pilares, em determinado período, leva ao (natural) desinvestimento nos restantes. Por exemplo: o confinamento coletivo terá como consequência natural a desvalorização da autorresponsabilização individual.

A coerência, continuidade, simplicidade da mensagem, tendo em vista o envolvimento dos cidadãos e sociedade e sustentabilidade ao longo do tempo, é a essência da intervenção.

B – Harmonização

A equidade (padrão ouro das intervenções em Saúde) na Pandemia pressupõe:

1) Equidade entre a intervenção na doença Covid-19 e outras patologias. Sabemos como foi desigual a afetação de recursos. Era intuitivo que o efeito medo e moda (critérios não racionais) hipervalorizasse a área Covid. Não era expectável que este padrão de intervenção perdurasse até finais do ano desperdiçando recursos de saúde instalados (setores privado, corporativo e social).

2) Equilíbrio entre os esforços sociais e individuais; entre setores de atividade. Este ponto tem sido objeto de avanços e recuos com mensagens contraditórias que as redes sociais e programas de humor têm ampliado.

3) Compatibilizar a natural e salutar informação à população e doses maciças de medo administrada por vários órgãos de comunicação. Primeiro o “share”, depois o interesse público, parece ser o lema!

4) A harmonização entre a intervenção em zonas geográficas de maior incidência e as restantes. O enfoque na estigmatização e isolamento (cerco sanitário), desvalorizando a interajuda e a coesão. Não pode ser resolvido por alguns o que é de todos! Não aprendemos nada com Ricardo Jorge ao opor-se ao cordão sanitário do Porto de 23/8/1899, chamando-lhe «um disparate máximo». Diferente epidemiologicamente e eticamente é o calibrar as ações restritivas (corretamente explicadas) com os diferentes índices epidemiológicos com apoio aos mais desfavorecidos e medidas de proteção especificas – Constantino Sakellarides (2020).

5) Equidade nas intervenções ao longo do território. O número mais elevado de infeções vai ser nas zonas de maior densidade demográfica (litoral), mas o maior número de complicações graves e mortes por 100.000 habitantes é no interior – os primeiros 100 dias de análise demonstra-o (Eduarda Costa e Nuno Costa – Finisterra, set. 2020).

6) Atraso relativo no necessário apoio aos vulneráveis: imigrantes, etnias e, entre nós, os idosos. Atrasado e desequilibrado, porque assente numa estratégia coletiva de isolamento (lar/prisão na denominação de Luis Conraria). Hipervalorizando a contenção Covid-19, preservando ao máximo a imagem pública dos lares em detrimento de todas as outras áreas da saúde dos idosos – mental, mobilidade, acompanhamento de outras patologias –, bem como áreas dos direitos humanos – liberdade, contacto com os familiares, etc. No fundo, “mais anos à vida sacrificando a vida dos anos”.

7) Um olhar para – o erro dos erros – a forma como estamos a cuidar e tratar os que não têm voz, nem nunca terão, os nossos mortos. Abandonados, despidos, sem despedida… nem sequer despedida para o Desterro, nas palavras de Zeca Afonso e Amália Rodrigues:

“….Sino de bronze
Lá na minha aldeia
Toca por mim
Que estou para abalar…”

C – Confiança

A confiança pressupõe ações confiáveis, assentes exclusivamente na verdade.

A cooperação internacional reduziu de 8-10 anos para 12 meses a produção de várias vacinas. «Quanto maior o susto, maior a inovação». (Duarte Santos; “Nova Águia”, nº 26, 2º semestre, 2020). O exemplo deve ser replicado noutras patologias e para outras latitudes (a ética global exige-o), por exemplo: a malária.

O acesso universal deve ser ponderado – 14% da população adquiriu 80% das vacinas. Deve impor-se o conceito estratégico de segurança coletivo universal com reforço de entidades supranacionais (ONU/ OMS) – Sotto Ferrão, “Nova Águia”, 190-4, 2020, e Adriano Moreira, “Nova Águia”, nº 26, 2º semestre, 2020.

A cooperação estratégica, coesão de atores, equidade de ações, nomeadamente a imunização de 60/70% da população vai posicionar-nos no patamar seguinte: luta, dura, longa e demorada, assimétrica nas consequências pela recuperação socioeconómica do país (toda a atenção é pouca!).
A resiliência da nossa população garante a nossa confiança.

O estudo da Pandemia, a resposta da população portuguesa e dos seus profissionais, poderá (assim o queremos) daqui a uns anos ser motivo de Espanto – palavra de Eduardo Lourenço e para Eduardo Lourenço, recentemente falecido.

Médico

Sobre o autor

José Valbom

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