Numa sala, bonitinha mas muito pequenina, juntaram-se uns quantos vices e uma espécie de “semiqualquercoisa”. Vice-reitores, vice-presidentes, vice-vice-diretor e os outros todos que, não chegando a ser qualquer coisa, pela força da persistência, quase que lá chegam. A confirmar a regra, a exceção eram dois presidentes: a da Fundação José Saramago e o da Câmara da Guarda. Como se vê, nada de relevante haveria neste encontro, às seis da tarde de um dia de semana chuvoso, caso não se tratasse da entrega do Prémio Eduardo Lourenço à Fundação José Saramago.
Em nome de uma das maiores figuras do país e, provavelmente, o único grande que a cidade conheceu, entregava-se um prémio, pequenino para combinar com a sala, pelas mãos do presidente da Câmara, à viúva e presidente da Fundação de outra das nossas proeminentes figuras. À distância, o ministro da Educação lá conseguiu um bocadinho para entrar, por um ecrã, em meia cerimónia. Tempo que o anfitrião não podia desperdiçar e reivindicou logo isto, isto e outra vez isto, como se não houvesse aquilo. E, pronto, entre a evocação da obra dos dois escritores e as justificações das ausências dos reitores e dos presidentes que os vices e os vice-vices trouxeram, lá se completou a coisa.
No meio daquilo há quem jure ter-se apercebido da breve incursão, em sobrevoo, que os dois autores ali fizeram. Um, sempre mais bem-disposto do que o outro, observava a “singeleza” do ato, o outro, sempre mais acutilante, observava a “rudeza” do ato.
Eu, egoísta e interesseira, só observava era a miséria franciscana daquilo e pensava que nenhum dos dois, Lourenço e Saramago, se haveria de ter incomodado muito que o ato tivesse ocorrido na feira.
Na feira, sim, porque há que ser prático. Se as feiras não nos prestigiam, e não, sendo a única coisa de que se lembram para nos tentar entreter e projetar (sempre mais o primeiro que o segundo), ao menos que lhe atrelem o pouco que nos distingue dos outros feirões todos: o Prémio Eduardo Lourenço.
Assim, quando chegarem as televisões, sempre poderemos mostrar ao país, quiçá ao estrangeiro, algo mais prestigiante do que as batatas do senhor António e os doces da senhora Maria. Não que tenha alguma coisa contra essas batatas e doces, mas, por mais que olhe, não lhe consigo encontrar nada que os distinga de quaisquer outros. São, completamente, vulgares. Apesar de persistentemente os divulgarem como se não houvesse aqui mais nada de que falar do que do tamanho dos tubérculos e frutas.
Liga-se a televisão e aparece a Maria, passa-se o dedo pelas redes sociais, damos com o Manel. Sobre o Eduardo e o José, nada. Quando muito, vá lá, uma coisita ou outra. O que, se a cada saco de batatas adicionássemos um Fernando, Rei da Nossa Baviera, ou assim, já não aconteceria. De certeza. Aliás, tenho cá para mim que até os ministros, da nação e arredores, os reitores e os presidentes haveriam de vir pelas batatas que davam obras literárias de brinde. Também acredito, piamente, que se não viessem, o senhor presidente da Câmara e as outras eminências guardenses, pelas batatas, haveriam de os convencer a vir. A esses e aos guardenses, todos.
Onde nem as flores luzem
“No meio daquilo há quem jure ter-se apercebido da breve incursão, em sobrevoo, que os dois autores ali fizeram. Um, sempre mais bem-disposto do que o outro, observava a “singeleza” do ato, o outro, sempre mais acutilante, observava a “rudeza” do ato.”