A cultura é um processo de criatividade e de transmissão que liga as gerações. É uma fonte de libertação e de realização individual e promove o enriquecimento e o engrandecimento coletivos. A cultura é também a via pela qual o homem supera as limitações que a realidade biológica lhe impõe. Limitações no espaço e no tempo, na vida e no sonho.
As artes, por seu turno, são linguagens pelas quais é possível expressar essa superação. Linguagens feitas de sons e de formas, de movimento e de refração.
As Pirâmides de Gizé, a única das Sete Maravilhas do Mundo Antigo que chegou aos nossos dias, são uma retaliação de imponência que o homem dirigiu ao próprio tempo: «O homem teme o tempo, o tempo teme as pirâmides que o homem construiu».
As personagens Astérix e Obélix transformaram a resistência num modo de vida e ainda iam encontrando boa-disposição para ridicularizar e humilhar os seus opressores.
Um paciente inglês (apesar de ter nascido na Hungria) fez da grande tela um labirinto de analepses para mostrar como o amor é sempre o caminho correto, apesar de nos fazer percorrer vias tortuosas, e é sempre a resposta certa, pese embora nem sempre seja correspondido.
O tango argentino revela a possibilidade de a sensualidade e a classe coexistirem enquanto fluxo que circula por dois corpos elegantemente distribuídos pela fina linha da sedução.
O Anjo da Guarda, descido à Terra pelas mãos do escultor que o adornou com asas delgadas e pés desproporcionalmente grandes, conforta a crença de haver sempre quem zele por nós.
A fotografia de uma criança nua e aterrorizada numa qualquer rua vietnamita, tornada palco de batalha, eterniza a noção de que nem um milhão de palavras são suficientes para descrever os horrores da guerra.
A “Ilíada”, joia da coroa da literatura ocidental, oferece-nos um retrato épico do homem e da sua condição, permanecendo impermeável a todas as teorizações sobre a natureza humana que se lhe seguiram.
Uma canção sobre uma pequena vila alentejana consegue evocar décadas de resistência à ditadura e de esperança na universalização e consagração de uma terra da fraternidade e da igualdade.
As óperas de Wagner, construções quase miraculosas que revivificaram temas esquecidos da mitologia pagã, deram origem a um culto místico que exerceu um fascínio sem precedentes sobre os círculos eruditos.
A “Última Ceia” cristalizou uma imagem imediatamente reconhecível por milhões de pessoas de todo mundo e de diferentes épocas.
A veia poética de William Blake esculpiu um caminho capaz de guiar até os espíritos mais insensíveis a um estado de empatia e de compaixão pelas crianças sujeitas à crueldade do trabalho infantil.
“Hamlet” deu voz e um sentido dramático às dúvidas existencialistas e (in)certezas relativistas que, desde tempos imemoriais, vão ocupando a mente humana.
Todos estas manifestações artísticas vêm superando as limitações da nossa existência física, permanecendo atuais mesmo após o desaparecimento do autor e do contexto que lhes deu origem. Sem elas, o mundo em que vivemos teria menos encanto e menos valor. Assim sendo, apoiar as artes assume-se como um imperativo para qualquer civilização digna desse nome.
* Historiador e ex-presidente da Federação da Guarda do PS