Obstrôncios

Escrito por Diogo Cabrita

O obstrôncio tem direitos e vocifera por eles. Ele vai ao médico e quer ser atendido à hora marcada. Não importa que outro demore mais, que as doenças não são todas iguais, não interessa que o médico veja mais consultas do que lhe é pedido e exigido.

Uma ideia que fica entre o obstruído de ideias e o abstracto de pensamentos e talvez o bronco de estilo.
Os obstrôncios estão em todo o lado. Curtos de informação, sabedores de regras e de normas, dominando protocolos, não têm jogo de cintura, não adaptam, não ajustam, não articulam conhecimento, não percebem a importância da interligação de experiências, não sabem que normas não se devem aplicar a todos os casos e dificilmente são flexíveis em tudo o que tocam. Obstrôncio é também aquele que não antecipa situações. Se vou caminhar descalço corro maior risco de pisar o que não quero. Se não olho para o rótulo corro o risco de beber lixívia. Se me atiro ao mar do Índico talvez encontre um tubarão. Se vou jantar a um lugar desaconselhado pela polícia corro o risco de vir despido. O obstrôncio tem direitos e vocifera por eles. Ele vai ao médico e quer ser atendido à hora marcada. Não importa que outro demore mais, que as doenças não são todas iguais, não interessa que o médico veja mais consultas do que lhe é pedido e exigido. O “normas” quer horários. O “normas” quer exactidão no tempo. Por isso é um obstrôncio e escreve em livros de protesto constantemente. Há gente desta no direito, na política, na administração, na função pública, na saúde. Encontrar um cidadão sem queixas à beira de um acidente. Um cidadão que corresponde a nenhuma queixa, ausência de dores, tranquilo, consciente, orientado, conversando ao telemóvel com a família pode ser uma histeria para um obstrôncio. O “normas” pergunta pelo acidentado e enfia-lhe colar cervical, maca kokil, imobiliza-o e leva-o em stress ao hospital. O coitado é uma vítima do protocolo e não do acidente. A inflexibilidade é prima da ausência de visão, é irmã da falta de sabedoria, da inexperiência. Para o obstrôncio gastar dinheiro público é um não problema. Destruir património é uma não importância.
Infelizmente, esta sabedoria que distingue as situações, que nos adapta de modo vivenciado à realidade, desapareceu e converteu-se na cultura da certificação desresponsabilizadora. O importante é garantir que eu não tenho problemas. Reduzir qualquer hipótese de risco não importando a eficiência do gesto realizado.
O protocolo em vigor para idosos que caem e estão a tomar antiagregantes e/ou anticoagulantes é um marco histórico da estupidez médica certificada e normalizada. Portugal faz neste momento milhões de TAC’s crânio-encefálicos normais para a suspeição de umas dezenas de hemorragias intracranianas. Idosos acamados que escorregam da cama e tombam no chão percorrem kms em ambulâncias para realizar TAC’s (não importa porque caíram ou que doença têm de base) com tudo pago pelo erário público. A medicina não é o que tem – é o que pode ter tido. E se? Assim a saúde gasta milhões de euros em transportes, em horas de funcionários desta ópera bufa e em exames complementares. Outra questão é saber que estudos se fazem para comparar a medida preventiva do AVC ou do enfarte, que é a introdução protocolada de anticoagulante, com as complicações da sua utilização indiscriminada. Aumento do risco de hemorragias graves em pessoas que caem com facilidade, que tomam anti-inflamatórios para as dores, etc. etc. Os obstrôncios adoram guiar-se por orientações construídas pelo grande lobby das farmacêuticas e nunca colocam questões e não têm dúvidas. Já tive urgências em que mais de 60 por cento das pessoas que atendi vinham para cumprir protocolos. De facto, os recursos esgotam-se, o sistema caminha de modo notório para um colapso dos funcionários, dos exames e das estratégias. A saúde, a educação, a justiça e tantas outras coisas caíram na mão destes “Zé das normas” em desprimor dos sábios e da experiência.

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Diogo Cabrita

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