A cosmovisão ocidental que se seguiu à II Guerra Mundial bipartiu-se, como sabemos, em duas linhas de pensamento inteiramente antípodes: de um lado estavam aqueles que, mutatis mutantis, mantinham a sua expectação do reencontro de uma Igreja tantas vezes tintada de sangue pelo colaboracionismo com regimes totalitários, com o Deus de Francisco de Assis e Joana d’Arc, mantendo não obstante um grau de criticismo que raiou por vezes a afronta explícita. Desse “grupo”, heterogéneo, informal e também por vezes heterodoxo, faziam parte Mauriac, Paul Claudel, Graham Greene, Sigrid Undset, Bernanos. Este último digladiou até ao suspiro derradeiro o desconserto na Igreja e denunciou desassombradamente o rumo errático daqueles que injuriavam Cristo simplesmente porque, dizendo-se cristãos, desmereciam o Filho do Carpinteiro; ou Graham Greene, que aturdia subtilmente os que preferiam «confessar os pecados dos outros» defendendo que «os princípios foram feitos para serem violados; ser humano é também um dever».
Do lado oposto pontificavam aqueles que negavam qualquer devir na existência humana: Sartre, Camus, Luigi Pirandello, Simone de Beauvoir. Foi esta corrente de pensamento – apesar de Camus se ter distanciado do apoio às políticas radicais de Leste – que acabou por prevalecer, como se sabe, mas é indubitável que as duas “escolas”, ambas estruturalmente críticas e combativas, corporizaram o pensamento de uma Europa que desejava soerguer-se de um imenso sepulcrário de ideologias. De ambos os lados houve reconhecimento: Sartre, Pirandello e Camus alcançaram o Nobel de Literatura (Camus recusou-se a recebê-lo), e bem assim foi outorgado o galardão a François Mauriac e Sigrid Undset. Estavam lançados os alicerces do que seriam as subsequências intelectuais do século passado e sucessivas gerações criaram a sua identidade por lógica reactiva ou anuitiva de correntes ideológicas emanadas do seio matricial exposto.
Com a queda do Muro de Berlim, o colapso do Comunismo e o advento do Neo-Liberalismo, começa a forjar-se um ser inteiramente novo. Paulatinamente depurado face a novas emergências antropológicas, mas sobretudo tecnológicas eis, totalmente configurado, duas décadas volvidas sobre a presente centúria, o Homo Sanus. Este não lê Claudel nem Sarte, aliás, nem sequer lê. Mais: desdenha ruidosamente dessa práxis tida por arcaizante. Não é ateu nem crente; nada lhe dizem ideários quer de esquerda ou de direita: busca apenas o seu bem-estar pessoal, uma espécie de desfastio existencial acomodando-se aos refúgios de conforto que o “mainstream” lhe proporciona. Absolutamente diluído na cultura de massas, começou por ser adepto do “fast-food” mas numa cabriola desconcertante, tornou-se subserviente do regime alimentar oposto onde pontificam absentismos e nutrições exóticas provindas da civilizações plurais, desde a nipónica à hindu; frequenta, – ou melhor, habita, – ginásios e parques de manutenção física, mas não o habita a mais leve ideia intelectiva. À imagem de Antoine, da magnífica obra de Martin Page “Como me tornei estúpido” (França, 2001; Ed. Rocco, Brasil, 2005), a espécie que nos aprouve chamar de Homo Sanus vê na consciência crítica um entrave à felicidade e esta fica reduzia a um mero conceito funcional aferrado na incomunicabilidade social. Importa, pois, para estes apóstolos dessa espécie de Sub-Hedonismo, antes “parecer” do que “ser”, já que a superficialidade é garante do triunfalismo inexorável da inactividade do intelecto. Tudo o que há de matéria orgânica no Homo Sanus é perfeito. O seu corpo é perfeito, um organismo irreprovável resultante das opções de vida biologicamente salutares. Aliás, ele é corpo. Mas perdoe-se-nos a eventual estultícia de uma questão, porventura até suplementar: o que faremos da civilização do pensamento? Extinguir-se-á simplesmente sob o pundonor da nossa indiferença? Que legado nos terá confiado um mandato de desresponsabilização?
* Escritor
** O autor segue a ortografia anterior ao AO 1990