“Ciclone de 1941”, foi a forma como ficou conhecida uma violentíssima tempestade ocorrida em fevereiro daquele ano e que foi, e ainda é, a mais severa de que há registo em Portugal. Mais de cem mortos, um número indeterminado de feridos e mais de um milhão de contos de prejuízo, metade do orçamento nacional de então, marcaram a tragédia.
Os prejuízos nas telecomunicações e noutras infraestruturas foram enormes, «alguns irreparáveis, que comprometeram seriamente a economia nacional». As comunicações telegráficas e telefónicas com Lisboa ficaram interrompidas durante vários dias, houve cortes no fornecimento de eletricidade e graves prejuízos em fábricas, habitações e monumentos. Foram inúmeros os cortes e choques nas linhas ferroviárias, alguns dos quais com vítimas mortais. Centenas de embarcações afundaram-se e centenas de milhares de árvores foram completamente arrancadas.
Nunca, que alguém se lembrasse, tinha vivido ou ouvido falar em tal tragédia. Para gentes pouco habituadas àquelas manifestações atmosféricas, raríssimas em Portugal, mais desprotegidas se encontravam e maior foi o terror que inspirou. Olhando para os estragos, quedavam-se incrédulas, quase esquecendo as amarguras dos efeitos da Grande Guerra, que então dilacerava o mundo.
Guarda, sábado, 15 de março de 1941
O dia nasceu escuro, com ventos fortes, acompanhados a partir do meio da manhã por uma grande tempestade de neve que rapidamente cobriu a cidade e a região com uma camada tão espessa que mal se podia transitar.
Como era dia de mercado, as ruas da Guarda estavam cheias de gente, de azáfama e bulício. A tempestade foi tão rápida, tão violenta, tão fortes as rajadas de vento e tão espessos os flocos de neve, que a cidade ficou deserta num piscar de olhos.
Nas ruas não se via vivalma, todos, os que puderam, correram a abrigar-se numa casa, como que voando. Nada inspirava segurança, as casas tremiam, as chaminés e as telhas voavam, tornando tudo ainda mais tenebroso. O vento, que crescia de momento a momento, era medonho. Mesmo nas suas casas, as pessoas tremiam de medo e invocavam a proteção divina.
As notícias, poucas, que iam chegando eram ainda mais desanimadoras. A Igreja da Misericórdia, souberam, tinha sido seriamente danificada e alguns dos coruchéus da Sé, velhos de séculos, tinham sido derrubados. A tempestade assumia, cada vez mais, aspetos tenebrosos e trágicos. No entanto, ao início da tarde, aquilo que parecia impossível estava a acontecer: Os ventos eram ainda mais fortes, chegando a atingir 135 Km/h.
As gentes, estarrecidas, nada podiam fazer. Imploravam a Deus ao mesmo tempo que o Céu parecia desabar em cima das suas cabeças. O temporal tinha-se transformado em ciclone, termo desconhecido da maior parte das pessoas, mas que irá perdurar nas suas memórias para toda a vida. Sinistramente, o vento e a neve que, em catapulta, varriam os telhados, começavam a minar a estrutura das casas, mesmo das de mais sólida construção. Se numas era a caliça que caía e as claraboias eram arrancadas, noutras eram as chaminés que eram derribadas.
Os candeeiros do Jardim José de Lemos ficaram todos desfeitos e a Praça do Mercado, com a sua cobertura em folha de zinco, que tanta comodidade dava aos seus utentes e era motivo do seu orgulho, voou pelos ares. No Seminário, então um edifício ainda recente, os prejuízos foram elevados. Também aqui, as chapas de zinco que cobriam o recreio dos alunos foram levadas pelo vento, parecendo simples folhas de papel. Umas foram ter às casas do Bairro Novo do Bonfim e outras ao Quartel Militar.
No Hospital Militar, a derrocada da chaminé e a violência dos estragos obrigou à transferência dos doentes para o Hospital da Misericórdia. Mas também este hospital sofreu estragos de monta, o mesmo acontecendo a todos os edifícios à volta da Igreja da Misericórdia, nomeadamente na Cozinha Económica.
Na Mata da Dorna, então muito mais vasta que hoje, mais de metade das árvores foram arrancadas pela raiz. Na bela mata do Sanatório Sousa Martins os prejuízos foram também muito grandes.
Para as pessoas a maior angústia residia na falta de informações, pois ninguém sabia dos outros e imaginava-se o pior. Das aldeias e dos outros concelhos também nada se sabia, pois os postes telefónicos e telegráficos tinham sido deitados abaixo. Todas as baixas estavam alagadas, os muros e os quintais destruídos, as terras de cultura arrastadas pela forte corrente dos regatos e ribeiros transformados em rios.
As oliveiras e outras árvores de fruto foram arrancadas e na estrada para o Vale do Mondego não ficou de pé nenhuma árvore de médio porte. As fábricas de Maçainhas e Trinta sofreram grandes danos, havendo cobertores que voaram para terras vizinhas.
Os soutos de castanheiros de Famalicão e Videmonte, muitos deles com séculos de existência, foram erguidos do solo como se de meros arbustos se tratasse. Com as estradas e os caminhos intransitáveis, a Guarda e as aldeias isoladas e as notícias alarmantes que iam chegando, maior era a inquietação de todos. As famílias, temerosas, juntavam-se para passar a noite, sem cómodos e sem luz, o que tornava a noite ainda mais tenebrosa.
Pouco depois da meia-noite o vento acalmou, o que permitiu algum repouso, mas cheio de angústias e incertezas.
Só que na segunda-feira, quando no resto do país já se deitavam contas à vida e aos prejuízos, nova tempestade de neve se abateu sobre a Guarda e a região. E na quarta-feira aconteceu quase o impossível, pois ainda um violento nevão se abateu sobre estas terras já tão martirizadas.
O Governo, atento à gravidade da situação, mobilizou todos os serviços do Estado e nomeou uma comissão encarregada de avaliar os prejuízos e as indemnizações a atribuir. Curiosamente, essa comissão era presidida pelo Dr. Joaquim Dinis da Fonseca, nosso conterrâneo, natural do Rochoso, deputado, e na altura Subsecretário de Estado da Assistência Social. Foram atribuídos subsídios a todos os concelhos do distrito e a todas as freguesias do concelho da Guarda para apoio às vítimas do ciclone.
A violência desta tempestade semeou a morte, o terror a miséria e o desalento por toda a parte. E não é por acaso que ainda hoje perdura na memória dos mais velhos.
* Investigador da história local e regional