O ano da morte de Noronha, Scapinakis, Veríssimo Serrão, Cruzeiro Seixas, Ribeiro Telles e Eduardo Lourenço …

Escrito por João Mendes Rosa

«São na verdade cada vez menos os que fruem a vida sem acotovelar os outros e seguem o seu caminho imperturbavelmente face à prática generalizada da inculpação e acusação»

Annus horribilis, ninguém o pode negar. Mas acrescentar que 2020 nos privou, numa leva nefanda e de uma assentada, da presença de seis dos grandes referenciais da cultura portuguesa contemporânea. Foi cada um de nós, que com eles mantinha uma determinada relação – nem que seja a mediática; mas sobretudo os que neles fundeavam as suas energias culturais – que morreu um pouco também neste tumulto vírico que tudo parece extinguir. Na verdade, há mais de dez milhões de infectados e a sua maioria nem sequer tem consciência da extensão da enfermidade; mas grassa, sim, uma sub-pandemia silenciosa e selectiva que se sacia na escolha fatal dos melhores e abalroou a nossa consciência colectiva, prostrando-nos na mais vil das orfandades espirituais, ao arrancar-nos, violentamente, esses insignes nomes que enformaram a nossa vida colectiva e a pessoal.

Uma subespécie do malfazejo agente infecioso parece investir irremediavelmente contra alguns dos sustentáculos intelectuais de um país que se já se demitia de pensar, de intervir, de opinar com propriedade, tem agora para motivos para continuar a escurar a sua vitalidade cívica (quando ela existe) no arremesso gratuito de impropérios, na pedrada inclemente e escusada, no rumor cortante e imerecido, na detracção, na invejazinha sectorial, no amigo que alfineta o amigo, na rivalização profissional, na camaradagem falaciosa, nos magnatas da ingratidão, no “anatema est” mais reaccionário, ainda que sob bandeiras pretensamente libertárias. É com o que ficamos… São na verdade cada vez menos os que fruem a vida sem acotovelar os outros e seguem o seu caminho imperturbavelmente face à prática generalizada da inculpação e acusação, no plágio literário ou artístico comprazendo-se nas minudências com que vão precisando os contornos da sua triste exiguidade.

Frusta este esvaziar lento da atmosfera onde nos habituámos a respirar, em que nos construímos a nós mesmos na sensibilidade e ilustração sob a égide das almas modelares, procurando, como elas, guindar este breve e ingrato existir às instâncias do espírito. Paira no ar um desconsolo medonho e por vezes desapetece viver…

Eis a tremenda cronologia do nosso desaire: a 9 de Abril era-nos roubado Noronha da Costa; a 31 de julho vimos partir Joaquim Veríssimo Serrão; quase um mês depois, a 26 de Agosto, deixava-nos Nikias Skapinakis; a 8 de novembro perdíamos Artur Cruzeiro Seixas, três dias depois ficámos sem Gonçalo Ribeiro Telles e a 1 de dezembro de 2020 dizíamos adeus a Eduardo Lourenço. A todos tive a dita de conhecer, cada um a seu modo. Noronha da Costa foi com quem menos travei relações. Encontrava-o em inaugurações de exposições e comuniquei-lhe, em Janeiro do presente ano, a escassos meses de falecer, portanto, que uma obra sua iria figurar na exposição resultante de uma parceria do Museu Gulbenkian e o Museu Regional da Guarda intitulada ‘Os Domínios do Olhar’. Nikias e Cruzeiro foram-me apresentados pelo saudoso João Camossa – velho romântico anarco-sindicalista e o meu mestre de mestres. Neste cruel 2020, estava a preparar juntamente com a Dalila D’Alte uma ambiciosa retrospectiva conjunta com o pintor Eurico Gonçalves, que a pandemia fez adiar e o desaparecimento do artista e poeta inviabilizou, pois queríamo-la realizar com a sua presença no ano do centenário. É de arrepiar pensar nas suas palavras: «Olhem que eu não chego lá»… E não chegou, infelizmente. Eduardo Lourenço conheci-o em meados dos anos 90, por intermédio de Alçada Baptista, numa altura em que estava a escrever o meu romance “O Foral e a Diáspora” (prefaciado pelo autor de “O riso de Deus”). Encontrava-me amiúde com Eduardo Lourenço na Gulbenkian e a última vez que falámos, há cerca de dois anos, trocámos opiniões sobre uma instalação artística a si dedicada, em preparação, da autoria do escultor e pintor Florencio Maíllo, com minha curadoria. No dia da apresentação póstuma da obra “Ensaios e Artigos (1951-2007)”, de Agustina Bessa-Luís, na Gulbenkian, em Dezembro de 2017, que contou com a sua presença, (foram oradoras Lourença e Mónica Baldaque), discorremos por algum tempo sobre “O Mistério da Légua da Póvoa” e as circunstâncias verazes do enredo do romance de Agustina, que ambos conhecíamos por familiaridade geográfica e pessoal até.

Mas foi com Ribeiro Telles e Veríssimo Serrão que mais convivi. Já aqui tive ocasião de testemunhar a amizade que me ligava a Veríssimo Serrão. E o que não disse na altura guardo-o no cofre das minhas memórias mais sagradas. De Ribeiro Telles retenho recordações inextinguíveis de um espírito verdadeiramente superior, «o cultivador de utopias», como lhe chamou Abel Coentrão. Pioneiro das políticas ecológicas e do nosso paisagismo mais consistente, sendo discípulo de Francisco Caldeira Cabral, legislador como Secretário de Estado e Ministro, assinando a Lei de Bases do Ambiente, a Lei da Regionalização, a Lei Condicionante da Plantação de Eucaliptos, da Lei dos Baldios, da Lei da Caça, e a Lei do Impacto Ambiental. Encontrávamo-nos em casa de Barrilaro Ruas – outro mestre querido já desaparecido – na Parede, no Café Gelo ao Rossio (conhecido no século passado por ‘Café dos Anarquistas’), na Rua do Ferragial, no Centro Nacional de Cultura, em momentos culturais que nos eram comuns e de outros acontecimentos, dos quais nos fomos desligando (como o 1º de Dezembro no Castelo de S. Jorge, cuja cobertura vegetal era por sinal um projecto da sua autoria). Espírito elevadíssimo, «cultivador de utopias», como lhe chamou Abel Coentrão, era tema frequente das nossas conversas a oposição ao Estado Novo, e chegámos a pensar num projecto editorial acerca da oposição desconhecida a Salazar – praticada por muitos agentes quase anónimos do reviralho, que recusaram a ribalta.

Acompanhei-o na linda loucura que foi o Movimento Partido da Terra e convidou-me para integrar, como independente, as listas eleitorais pelo círculo da Guarda em 1999. Depois, pelos anos fora, encontrávamo-nos naturalmente em eventos culturais que nos eram comuns. Uma das últimas vezes que passámos mais tempo juntos foi aquando da sua presença na Beira Interior. Em 2008, se não erro, depois de dar uma brilhante palestra num equipamento cultural acabado de inaugurar – onde foi alvo, por sinal, de uma interpelação arrogante de um espectador mal-informado, que o etiquetou de «intelectual de Direita» e Ribeiro Telles nunca foi de Direita (basta ver o que foi a sua acção na oposição ao Salazarismo, na “Renovação Portuguesa” que, com a Acção Socialista Portuguesa, de Mário Soares, e outras plataformas políticas originaram a coligação Comissão Eleitoral de Unidade Democrática – CEUD – às eleições para a Assembleia Nacional de 1969 e ter sido eleito deputado independente pelas listas do PS em 1985, por exemplo). Depois da sessão, onde, à parte do incidente referido, fora ovacionado de pé, perguntei-lhe, já no carro, o que achava da arquitetura do edifício. Respondeu-me, rindo: – É grotesca! Mas antes grotesca do que aterradora!

João Mendes Rosa
Escritor

(O autor escreve de acordo com a grafia anterior ao A. O. de 1990)

Sobre o autor

João Mendes Rosa

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