1. Sobre o “reality show” de sexta-feira na Casa Branca, já quase tudo se disse e escreveu. A merecida indignação ecoou um pouco por todo o lado. De resto, escasseiam os adjectivos para classificar tão aviltante número de bullling. Destinado a humilhar um líder de um estado soberano, cujo único “pecado” tem sido defender o seu país, sem medo e sem hesitações. Desafiando alguns dos poderes mais tenebrosos que o mundo conhece. Mas não vou repetir o que todos sabem e alguns fingem ignorar. Queria só acrescentar dois pontos. O primeiro é o (ainda) líder mais poderoso do mundo ter transformado uma conferência de líderes num pátio de escola. Onde um grupo de rufias emboscam um colega desprevenido. Exibindo a proverbial galeria de rancores, bazófias e intimidação. Terreno onde os provocadores se sentem confortáveis, pois sabem que esse jogo cria desconforto e faz vacilar. O segundo ponto é, no fundo, a verdadeira razão de ser de tudo isto. Trump tem pressa em acabar com o conflito. Putin também, mas só ele e Trump, com Zelensky de fora. Para além, claro está, de ainda ir a tempo de salvar a economia interna. A história das conquistas e intervenções militares russas, desde sempre tem sido marcada por esse modus operandi: anexar, anular o líder que resiste e colocar uns vassalos em seu lugar. Foi assim na Finlândia e na Polónia por duas vezes no século XX. Foi assim nos países Bálticos. Foi assim nos países do Leste europeu, que ficaram sob a sua influência a seguir à II Guerra. Foi assim na Hungria, em 1956. Foi assim com Dubcek, na primavera Checa, em 1968. E tem sido assim na Ucrânia, por várias vezes neste século. Ou seja, a exigência principal de Putin para negociar com Trump e poder fazer algumas concessões, é que Zelensky saia do caminho. Em resumo: aos olhos de Moscovo e Washington, o presidente ucraniano foi destituído da sua qualidade de negociador, passando a ser tratado como fazendo parte do próprio pacote negocial…
2. Com o tempo, a memória deixa de ser um catálogo linear e sempre disponível. Com o tempo, a memória passa a fixar-se em camadas sobrepostas. No final da metamorfose, agrupa-se em ficheiros autónomos. Alguns estão fechados a sete chaves, para não fazermos mais perguntas. Outros estão sempre lá, para o que der e vier. Outros reúnem as memórias marteladas pela fantasia, a imaginação, ou o remorso. Que preenchem da forma mais conveniente os espaços em branco. Ou acrescentam outros que lá não estavam. À falta de outro nome, são essas as memórias de consolo, com que vamos mentindo a nós próprios. Outros ficheiros estão em aberto. Não sabemos ao certo o que fazer com eles. São nuvens que tanto podem ocultar o sol, revelá-lo, ou fazer chover. Ah, estava a falar de quê?
3. Para se entender o funcionamento dos partidos políticos, é necessário ter feito parte de um. Ou vários, para uma abordagem comparativa. Para quem é estudioso, ou simples curioso, do funcionamento interno destas estruturas, a experiência é um role play muito eficaz. Os partidos políticos são como que estufas, onde prosperam ambições cruzadas, currículos duvidosos, fidelidades transacionáveis, danças de nomes, em que o gordo joga sempre à baliza. Um melting pot de falsidades, compressão da liberdade de opinião, atrofia do pensamento e mobilização oportunista das boas vontades.
4. Pensar é a única verdadeira droga dura. Quando inicias o percurso, não falta gente à volta. Mais à frente, parece que estão todos em movimento. De repente, não sabes bem quem se move e em que direcção. A sensação é idêntica à de quando estão dois comboios parados, lado a lado numa estação. Quando um deles inicia a marcha e nós observamos a partir do que está parado, parece que quem se move é o “nosso”. Mais à frente, começas a falar sozinho. A traçar as linhas para unir os pontos de que precisas para te instalares no desenho cósmico. A debicar migalhas de amor esquecidas pelo caminho. No final, olhas à volta e não vês ninguém em redor. Tranquilo. Não interessa se estás no cimo da montanha, ou no meio de uma multidão. Se é dia ou noite. Se acordas num prado, ou numa cidade em ruínas. Então, e só então, podes dizer o poema.
* No calendário vegetal celta, significa “freixo”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia