Memória de Abril

“(…) após o pico de reconhecimento que culminou com a escolha da Guarda para acolher o primeiro 10 de Junho, a sombra da extinção aproxima-se inexoravelmente da presença militar na Guarda. Ao fim de oito séculos, uma cidade fundada com a missão de ser um pilar fundamental da defesa do país, perde a sua unidade militar, uma marca da sua identidade.”

Há uns dias, ao arrumar alguns livros e papéis na minha casa de aldeia, descobri um dossier em cuja capa estava escrito “Processo político-militar do 25 de abril”. Nessa pasta o meu pai tinha compilado religiosamente toda a documentação relativa à sua participação na revolução dos cravos, desde as primeiras reações ao conhecido decreto-lei que tudo despoletou, até às cerimónias do 10 de Junho de 1977 na Guarda.
E num “flashback”, recordei-me daquela tarde de abril de 1974. Tinha 11 anos, estava em Vila Cabral, hoje Lichinga, no Niassa, norte de Moçambique. Pela terceira vez acompanhávamos, eu e a minha mãe, o meu pai naquela que era já a sua quinta comissão na Guerra Colonial. Sempre em zona operacional, exceto um pequeno hiato em 1970, em luanda. Ao chegar, com os meus amigos, filhos de outros militares, de uma tarde de brincadeira na rua, à messe onde se jantava diariamente, surpreendeu-nos a ambiente de alegria e as “bazucas” – cervejas de meio litro que corriam de mão em mão. Que se passa? Perguntei à minha mãe, que tinha chegado um pouco antes. «Houve um golpe de estado em Lisboa, o Marcelo rendeu-se. Em breve devemos voltar para casa».
Levou quase um ano. No início de abril de 1975, depois de arrear e trazer a última bandeira portuguesa hasteada no Niassa, chegámos à Guarda, desta vez com a certeza de que não seríamos novamente separados ou obrigados a partir.
O meu pai assumiu o comando do Batalhão de Infantaria da Guarda, ex-RI12, até então entregue ao então capitão Monteiro Valente, o homem que liderou a revolução na Guarda. Dois conterrâneos da Miuzela, que não se conheciam dada a diferença de idade, e que a partir daí formaram uma equipa e uma amizade que só a morte prematura do Major General Valente interrompeu.
Era o tempo das greves no liceu (lideradas por maoistas que, meia dúzia de anos depois, regressaram à Guarda como militantes do CDS), das revoltas nas fábricas, das pequenas e grande lutas em que as forças armadas eram sempre chamadas a intervir e a mediar, desde os conflitos de águas entre vizinhos às revoltas dos espoliados da Draga da Gaia.
O primeiro desafio que o meu pai abraçou foi garantir a segurança das eleições para a Constituinte, as primeiras eleições livres. Depois, a difícil missão de apoiar logisticamente o acolhimento aos milhares de portugueses que regressaram de África. Depois evitar tensões durante todo o Verão de 1975, evitando o extremar de posições de parte a parte e garantir a disciplina e operacionalidade da unidade militar que seria a primeira linha da frente em caso de uma muitas vezes anunciada invasão espanhola ou de forças spinolistas. O “Verão quente” na Guarda foi um verão tranquilo graças aos dois protagonistas militares do processo, mas também a figuras como o Governador Civil Dr. Manuel Vilhena e o Dr. João José Gomes, este insigne lutador antifascista da Guarda, com inflamadas crónicas aos microfones da Rádio Altitude, a “voz do povo”.
Em novembro, a normalidade instala-se pouco a pouco, a democracia consolida-se e finalmente o meu pai vê o seu grande amigo e colega de curso Ramalho Eanes ser eleito Presidente da República. Mas em breve, após o pico de reconhecimento que culminou com a escolha da Guarda para acolher o primeiro 10 de Junho, a sombra da extinção aproxima-se inexoravelmente da presença militar na Guarda. Ao fim de oito séculos, uma cidade fundada com a missão de ser um pilar fundamental da defesa do país, perde a sua unidade militar, uma marca da sua identidade.
Mais grave, nenhuma memória desses tempos de heroísmo e entrega resta. Nem um pequeno museu ou centro de interpretação recorda essa matriz da razão de ser da Guarda, hoje focada noutros desígnios, ou não.
Há poucos meses, a participação do coronel Carlos Alberto Vieira Monteiro no 25 de Abril foi finalmente reconhecida pelo país com a atribuição da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pelo Presidente da República. Espero que um dia os meus filhos a mostrem aos netos e lhes digam que o avô Carlos arriscou tudo para libertar este país e acabar com a guerra. E que eles nunca se esqueçam do seu exemplo.

Sobre o autor

António José Vieira Monteiro

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