Lactário Dr. Proença

Escrito por Francisco Manso

“O edifício, embora digno, olha quase com humildade para a majestade arquitetónica do Hotel de Turismo, que lhe fica logo em frente. No entanto, o Lactário fervilha de vida e de entusiasmo com as muitas crianças que ali são apoiadas diariamente. Já o Hotel, pelo contrário, sem clientes, morreu, ficaram as paredes e as saudades das gentes da Guarda.”

Vai fazer no dia 25 de maio 96 anos que o Lactário Dr. Proença foi inaugurado.
É uma obra de assistência exemplar, que mereceu, desde logo, rasgados elogios em todo o país e na Guarda pelos seus objetivos e por ter nascido da boa vontade de todos, incluindo o influente maçónico José Augusto de Castro. Também a rapidez da sua construção chamou a atenção de todos.
O edifício, embora digno, olha quase com humildade para a majestade arquitetónica do Hotel de Turismo, que lhe fica logo em frente. No entanto, o Lactário fervilha de vida e de entusiasmo com as muitas crianças que ali são apoiadas diariamente. Já o Hotel, pelo contrário, sem clientes, morreu, ficaram as paredes e as saudades das gentes da Guarda.
O dr. António Augusto Proença formou-se em Medicina em 1901, instalando-se na Guarda. Os doentes pobres nada lhe pagavam e muitas vezes era ele próprio que lhes aviava gratuitamente as receitas. Faleceu a 16 de abril de 1932.

Figura 2 Hotel De Turismo

Figura 1 – Hotel De Turismo

 

Dr. António Augusto Proença: Pai dos pobres

A iniciativa da construção de um lactário na Guarda partiu do padre Joaquim Álvares de Almeida, hoje mais conhecido pela sua vasta obra literária e pelo seu pseudónimo: Nuno de Montemor. Capitão-capelão do Regimento de Infantaria 12, vivia angustiado pelo drama de tanto pequenino esfomeado porque os seus pais pouco ou nada tinham para lhes dar.
Para debater o assunto e encontrar soluções, convocou uma reunião para o dia 4 de janeiro de 1926, na sala de despacho da Santa Casa da Misericórdia da Guarda, com algumas das figuras mais gradas da cidade. Expôs a situação dos pequenitos sem ter que comer e dos pais que, mesmo tirando da boca, pouco lhes podiam dar. Ao mesmo tempo lembrou o grande homem e médico generoso, o Dr. António Proença, havia pouco tempo salvo de grave enfermidade, e que, pelo muito que tinha dado aos doentes da região, seria merecedor de uma homenagem.
Vai daí, logo nessa reunião foi deliberado construir um lactário para as crianças pobres e atribuir-lhe o seu nome: Dr. Proença. A comissão promotora ali nomeada era composta pelo Major João de Sena Belo, Padre Joaquim Álvares de Almeida, Dr. José de Almeida, Dr. Ladislau Patrício, Luís Ribeiro de Portugal, Manuel Conde, António José Prazeres, Luíz José Alexandre e Dr. Frutuoso Ferreira Alves.
A adesão, quase diria entusiasmo, das gentes da Guarda, aqui residentes ou espalhadas por todo o mundo, foi imediata. Ricos e pobres, todos colaboraram na medida das suas possibilidades. Se uns davam dinheiro, outros davam a força dos seus braços. Diz-se que na Guarda não houve um único operário que recusasse a sua dádiva.

Figura 1 Lactário Dr. Proença

Figura 2  – Lactário Dr. Proença

A primeira pedra

O dia escolhido foi o 1 de maio de 1926, que veio a ser, por sinal, um domingo muito chuvoso, mas que não impediu que na Praça Velha se organizasse um grande cortejo humano, quase uma multidão, que se dirigiu para o Jardim José de Lemos a fim de proceder ao lançamento da primeira pedra da obra, num terreno cedido pela Câmara, junto ao jardim José de Lemos.
As crianças entoaram o hino do Lactário, acompanhadas pela banda do R.I. 12. Mas já antes tinham ido cumprimentar o Dr. Proença à sua residência, onde fora construído um arco alegórico, feito de verdura, pelos seus admiradores.
Foi um dia apoteótico, como era de esperar. Do distrito ninguém quis faltar, e o próprio Presidente da República se associou ao acontecimento.

 

«Aqui dentro somos todos iguais»

Foi com esta frase que o Dr. António Augusto Proença recebeu os operários da Guarda e os galvanizou.
Logo aí sentiram que o Lactário seria uma obra sua e que seriam eles, e mais ninguém, a erguer as suas paredes. Para isso abdicariam do descanso ao domingo e, mais tarde, ainda tiveram que dar uma hora diária. Quem parece que não gostou muito da ideia foi alguma imprensa, tida por bolchevista, que fazendo eco de uma parte da comunidade portuguesa, afirmava que os operários não faziam este serviço voluntariamente, mas porque a isso estavam obrigados.
O jornal nacional “A Batalha” referia-se, concretamente, aos operários que estavam a construir o edifício do Banco Nacional Ultramarino e ao seu mestre-de-obras, António Rebelo Barão, que fizera o projeto arquitetónico. Julgo que tudo não passou de má-língua, mas que obrigou a que os operários tivessem que fazer um baixo assinado desmentindo os factos. É um retrato do impacto que a obra estava a ter em todo o país.

Figura 3 Nuno De Montemor

Figura 3 – Nuno De Montemor

Por mim, confesso que aquilo que mais me impressionou neste projecto foi o envolvimento de toda a sociedade egitaniense. Dos jornais da terra que o acompanhavam e faziam a sua apologia; dos jornais nacionais que lhe davam destaque e lhe faziam rasgados elogios; do rico ou do pobre que dava o que podia. O bispo D. José Alves Matoso foi nomeado seu protetor e as mulheres da Guarda organizaram-se, intitulando-se “Madrinhas do Lactário”.
Os mordomos da Festa da Flor, uma das muitas festas que por aqui se realizavam, decidiram que as receitas reverteriam a favor do Lactário. Também para angariar fundos foi feita uma subscrição que em muito superou as expetativas dos seus organizadores. Na relação dos subscritores, e só para se ter uma imagem da Guarda de então e do que para ela representava a presença de uma unidade militar, contei mais de vinte oficiais com a categoria de tenente!

Dois homens o mesmo sonho

Coordenar os recursos necessários, dar ânimo quando muitos vacilavam, competia a Álvares de Almeida. Morreu, acidentalmente, em Lisboa, no dia 4 de janeiro de 1964, mas foi sepultado no cemitério desta Guarda que ele tanto amava.
A sua paixão era, para além das letras, o Lactário. A ele se empenhou e dedicou com todo o entusiasmo, toda a sua vida. Ele próprio gostava de dizer: «Quero ao Lactário tanto como a um filho direto».
O outro homem apaixonado pelo Lactário foi o dr. Afonso Sanches de Carvalho, também ele sacerdote e distinto escritor. Quando morreu, a 22 de novembro de 2009, era o padre mais velho da diocese, mas continuava a ser diretor do semanário “A Guarda” e do Lactário. Ambos enalteceram as gentes e as coisas da Guarda, onde, afinal, nenhum deles nasceu, mas que mostraram saber amar.
A mesma paixão pelo Lactário, por estas terras e os seus homens, sobretudo os mais carenciados.

* Investigador da história local e regional

Sobre o autor

Francisco Manso

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