Focos de artifício

“É verdade que a minha cabeça não é um teatro lisboeta, embora dê barraca sensivelmente o mesmo número de vezes.”

Às vezes, há pessoas que me dizem, “Gosto mesmo muito de ler as tuas crónicas”. Com alguma humildade, eu respondo-lhes que, habitualmente, não dou grande importância às suas opiniões. “Mas porquê? Por sermos teus amigos, ou da tua família?” “Não, porque são pessoas imaginárias que me aparecem nos sonhos enquanto durmo”.
Ando preocupado com as pessoas que me aparecem nos sonhos. Não por achar que ouço vozes, até porque elas falam muito baixinho, mas por ter medo que apareça nos sonhos alguém representada por uma imagem que se auto-identifica como um género diferente daquele dessa personagem imaginária. Uma coisa que pode ser desagradável é ter os sonhos invadidos por militantes das guerras identitárias aos gritos e com vontade de cancelar o sonho dessa noite.
É verdade que a minha cabeça não é um teatro lisboeta, embora dê barraca sensivelmente o mesmo número de vezes. Fora da minha cabeça, as mesmas pessoas que se manifestam publicamente contra o binarismo e o determinismo sexual também interrompem peças porque um homem representa um papel de uma mulher, numa clara afirmação de binarismo e determinismo. Dentro da cabeça, a minha inteligência já não processa tanta complexidade. Eu desejaria ter uma inteligência artificial, porque a minha natural não dá para muito mais do que aquilo que se tem visto, aqui e por aí fora.
Muitas pessoas andam assustadas com os perigos que a inteligência artificial pode trazer a humanidade, nomeadamente o risco de as máquinas decidirem fazer o pequeno-almoço à hora do costume numa manhã em que uma pessoa fica mais tempo na cama.
Qualquer leitor que ache que um mundo governado por máquinas é uma tragédia, faça favor de ler os jornais portugueses do último mês e meio sobre como é viver um país governado por maquinações. Mas desengane-se quem julga ver em mim um optimista em relação à tecnologia. O que sou é um pessimista em relação à humanidade.
“As máquinas vão passar a desenhar quadros”. Já os humanos andam a atirar sopa a quadros.
“Já é possível uma máquina escrever uma bela canção”. Mas ainda não foi possível escrever uma boa canção para a Rosinha.
“As máquinas vão produzir objectos”. Os humanos andam a séculos a produzir abjectos.
“As máquinas vão tomar decisões ou pensar por nós”. Os humanos pensaram e decidiram eleger Trump, ter comportamentos paranóicos durante a pandemia, apoiar Fernando Santos na selecção e dar uma maioria absoluta do PS.
Não digo que devamos substituir os seres humanos por máquinas. Aos 50 anos já se passa bem sem ambos. O leitor, chegado a este parágrafo, deve estar a pensar, “mas este gajo é um ludita e um misantropo?” Eu não chego a ter tempo de responder, porque, entretanto, acordei e esse leitor desapareceu.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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