O país atravessa um período particularmente difícil e duplamente perigoso. Por um lado, fomos atingidos por uma pandemia que mata uns, deixa outros com graves sequelas e atinge muitos com o medo de lhes acontecer o mesmo. Por outro, assistimos ao acentuar de uma grave crise económica. O medo condicionou os comportamentos e levou as pessoas a aceitarem coisas que antes seriam impensáveis. A crise económica criou o ambiente propício para que alguns se aproveitem disso mesmo.
Muito antes de surgir o vírus, já muitos economistas alertavam para a estagnação da economia. Agora, com a crise instalada e com a ascensão livre de uma certa forma de olhar para estas coisas, começa a vir ao de cima a natureza humana e o espírito do salve-se quem puder e do vale-tudo. Alguns apontam para um ciclo negativo de mais de 10 anos. Com ou sem bazuca, a crise está aí para durar, pelo menos para os mais vulneráveis. A bazuca vai servir, sobretudo, para que os escravos não morram à fome. Na verdade, nenhuma sociedade assente na desigualdade e na injustiça sobrevive sem uma percentagem significativa de desfavorecidos, os quais preenchem o nicho funcional menos apetecível da civilização. A bazuca destina-se, assim, a afinar esse processo.
Não contem com uma ligeira queda do PIB e um aumento do desemprego passageiro. Nada disso! A acreditar no passado recente da chegada dos fundos europeus a Portugal, nada nos faz acreditar que o processo venha a ser diferente. Basta olharmos para os inúmeros episódios de fura-filas no processo de vacinação para percebermos o que aí vem quando os milhões começarem a chegar. O tuga encontra sempre uma justificação para tudo. É o único que consegue explicar com a mesma facilidade porque é tão bom dar a mão ao diabo como fazer o seu contrário.
Não é por acaso que certos secretários de Estado deste governo abandonaram os seus lugares para assumirem cargos de coordenação das comissões das regiões por onde vai passar toda a dinheirama. Nem é coincidência que os dois maiores partidos com representação parlamentar, PS e PSD, tenham feito acordos tácitos para distribuírem esses cargos. Tudo aponta para que os processos anteriores se repitam. Estranha-se, ou talvez não, como é que os outros partidos se calam perante tais arbitrariedades concursais, se é que de concursos se pode falar neste tipo de encenações.
Mas deixemos, por agora, a inevitabilidade do que nos há de vir pela frente e falemos de coisas mais concretas. Passou quase despercebida uma notícia sobre a fuga, evasão e abuso fiscal cometidos contra o Estado e os contribuintes portugueses por empresas, fundos e particulares, que ascenderá atualmente a cerca de 900 milhões de euros ao ano. Este estudo mostra que a situação é altamente degradante, tendo em conta os valores astronómicos envolvidos.
Mas não se julgue que o caso é exclusivo de Portugal. Admite-se que todos os países do mundo somados «perdem anualmente mais de 360 mil milhões de euros em impostos por causa do abuso fiscal internacional». Desses 360 mil milhões, mais de 57% «são perdidos para empresas multinacionais que transferem lucros para paraísos fiscais com o objetivo de subdeclarar rendimentos obtidos em países onde fazem negócios e, consequentemente, pagar menos impostos do que deveriam», dizem os autores do estudo. Os restantes 43% são perdidos para milionários que escondem ativos e rendimentos não declarados no exterior, fora do alcance da lei.
Já em Portugal, os procedimentos enraizados na sociedade de não pedir fatura por qualquer serviço prestado ou compra assentam no hábito, ao nível do escalão de negócios mais inferior, de os orçamentos variarem conforme a necessidade de emissão, ou não, de fatura. Esta economia paralela é típica de países onde o trabalho é muito mais tributado do que o rendimento especulativo, originando grande injustiça fiscal. Funciona como uma certa válvula de escape social contra a pressão iníqua do Estado, o mesmo que depois dá milhares de milhões a bancos e a todo o tipo de negócios e lóbis de contornos mafiosos.