Com os que ninguém quer, ninguém se importa
Na transferência de responsabilidades de outras instituições sociais, como a família e o Estado, o modelo inerente ao conceito goffmaniano de “instituição total” é o que continua a prevalecer e, ainda que dificilmente ajude algo ou alguém, porque assenta sempre no princípio de que o individuo institucionalizado é o único culpado de todos os seus comportamentos, sejam eles de que índoles forem, demasiado frequentemente. Dispondo de sofisticados e poderosos dispositivos de despersonalização e normatização, esta instituição tende sempre a trabalhar mais para ela própria do que para a comunidade que é suposto servir. O que, tendo em conta a natureza humana, facilmente se compreende. Agora, o que já não se compreenderá tão facilmente serão as omissões do Estado e das outras instituições sociais, a começar pela família. Ou melhor, as omissões dos indivíduos que compõem o Estado e as outras instituições, incluindo a família. Por conveniência e, essencialmente, por preguiça delega-se noutros, sem qualquer garantia, passada, presente ou futura, de que os outros farão, ou farão melhor, aquilo que não somos capazes ou não queremos fazer. É desta forma que entregamos as nossas vulnerabilidades, como quem diz crianças, jovens e, mais recentemente, idosos, a um qualquer, sem, sequer, nos preocuparmos mais com o que lhes acontece. Por isso, a menos que uma qualquer estação de televisão, de rádio ou outro meio de comunicação de massas nos escancare as portas, ninguém se preocupa em conhecer, monitorizar e avaliar o que se passa daí para dentro. Onde, ainda de acordo com Goffman, as humilhações, a par com a agressividade (de que a pedofilia na Igreja será apenas uma das suas múltiplas faces), são o instrumento mais comum de controlo e, para eliminar a imagem que o indivíduo tem dele próprio, começam logo no momento do ingresso na instituição.
Mais uma vez, será a natureza humana a justificar esta ausência de escrutínio das instituições que, hoje, mais ainda do que no passado, são, amiúde, as grandes empregadoras da maioria dos municípios menos desenvolvidos e demograficamente deprimidos, o que acabará por as revestir da importância que evidenciam a todos os níveis. Pelo que, seja a nível local ou nacional, nenhum candidato, com reais intenções de ser eleito, se atreverá a esquecer e, muito menos a afrontar. Por isso, em vez de nos focarmos tanto em colar apenas à Igreja o horror, melhor faríamos em estender o mesmo olhar crítico a outros locais de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas vulneráveis, separados do resto da sociedade durante muito tempo, leva a vida formalmente gerida por outros. Gestão com que, direta ou indiretamente, muitos compactuam ou de que, pelo menos, são testemunhas, mas de quem, talvez, porque, a esses, a desgraça dos outros importe muito menos do que o seu próprio proveito, ninguém, nunca, viu indignação perante tanta malvadez. A começar pelos que, perante a omissão do Estado e das famílias, apercebendo-se de que algo não vai bem, por medo, covardia ou, simplesmente, pelas gratificações, passadas, presentes e futuras, preferem continuar calados.
Com os que ninguém quer
“É desta forma que entregamos as nossas vulnerabilidades, como quem diz crianças, jovens e, mais recentemente, idosos, a um qualquer, sem, sequer, nos preocuparmos mais com o que lhes acontece.”