Os cento e oitenta e tal dias em que, de braço esticado à janela do comboio, esperou por aquela passageira, a quem fazia questão de guardar o lugar ao lado do dela na velha carruagem suíça, não chegaram para que esta lhe ficasse a saber o nome. Mas isso também não passará de um pequeno pormenor, a que os poucos minutos de conversa diária não chegaram porque foram gastos nas coisas menos formais da vida. Nascida e crescida na Régua, por questão de sobrevivência, viria a instalar-se no Porto da mesma maneira que como o teria feito noutro sítio qualquer, se o comboio que nesse dia apanhou lá tivesse ido parar. O que já diz tudo sobre a influência do comboio na vida daquela reguense. Não estivesse ele ali, à mão de semear, e a mulher nem da Régua teria saído. Assim, não só saiu como não voltou. Ou por outra, voltou, mas só pelo tempo que o comboio demorava a partir outra vez. A ideia de fazer das viagens de comboio o seu modo de vida nascera-lhe no momento em que, farta da semiescravatura a que a sua condição de órfã a votara nos idos de 60, lhe pediram que fosse de comboio ao Porto levar uma encomenda. A recoveira do costume adoecera e não havia mais ninguém disponível para acudir à urgência que a maturação dos figos impunha. Se os figos, vendidos desde o ano anterior, não chegassem depressa à regateira do Bolhão, estragar-se-iam. Foi assim, a impedir o prejuízo dos patrões, que descobriu a forma de se livrar deles. Nesse dia, o trabalho não lhe custou. Não teve que andar ao sol, não teve que se cansar e não teve que andar todo o dia a ouvir ordens e reclamações. Bastou-lhe pegar na cesta dos figos, subi-la para o comboio e sentar-se à espera de chegar a Campanhã. No regresso fez o mesmo, só que sem cesta.
Daí a mudar-se de armas e bagagem para uma das ilhas nas Fontainhas, não tardou muito e ali continuava ela. A levar e a trazer pequenas encomendas de um lado para o outro por uns trocados. Dinheiro a que juntava o produto da venda, aos passageiros do comboio sem bar, de garrafas de água, gulodices, pensos rápidos, lenços de papel e até cotonetes, para ajudar a pagar o passe e a renda ao fim do mês. Peso excessivo, já se adivinha, para atrelar às costas, cada vez mais frágeis, ao longo das três ou quatro carruagens, enquanto apregoava “chicolates”, “rabuçados”. O que lhe vinha mesmo a calhar era um passageiro ou, no caso, passageira de confiança para lhe guardar os sacos da mercadoria entre as suas inúmeras idas e vindas. Compreende-se, assim, que a cada anúncio de chegada do comboio de ligação de S. Bento, se despachasse nos acenos que atirava da janela, em direção precisa, para a plataforma quase deserta: “aqui, aqui, venha que já lhe guardei um lugar”.
“Chicolates” e “Rabuçados”
“Peso excessivo, já se adivinha, para atrelar às costas, cada vez mais frágeis, ao longo das três ou quatro carruagens, enquanto apregoava “chicolates”, “rabuçados”. “