Beth*

1.Como eu percebo o Pessoa do “Poema em linha recta”!… A fragilidade escondida dos super-heróis com que nos deparamos no quotidiano é tão real como a fragilidade que se mostra, sem máscaras e sem medo. O problema está em que a força da que está à vista põe a nú aquela que se varre cuidadosamente para debaixo do tapete. E quanto mais se tapa, mais se odeia quem expõe essa fraude à luz do dia. Sem perceberem a dimensão da dádiva que esses anjos delicados lhes sussurram. Tempos complicados os nossos. Quem mostra lutar pela empatia contra a vaidade é encarado como um bizarro…

2.Existem tabus onde não é fácil tocar. Um deles revela-se após uma grande tragédia, com custos humanos. Proliferam então as manifestações de compaixão. Na política, na diplomacia, nas redacções, nas televisões. Replicadas massivamente nas redes sociais. Um cínico perguntará se tamanho pesar terá algum efeito prático. A pergunta é legítima. Como será legítima a indignação que lhe sucede. Mas a questão está mal colocada. A tragédia, ou a calamidade, como que eliminam a possibilidade do humor. Mas a verdadeira dor só é experimentada por quem foi directamente afectado. As redes sociais são então atravessadas por um caudal de “solidariedade”, onde ficar de fora é um sacrilégio. Porquê? Porque todos querem marcar presença. Dizer “eu estou aqui também, estão a ver”? A genuinidade do pesar é sacrificada em prol do poder sugestivo das representações colectivas. Por essa razão, dou muito mais valor à solidariedade espontânea, avulsa, com assinatura.

3.Nunca direi a ninguém “sê feliz”. Mais sensato é augurar: “vive como se fosses feliz”. Não que seja descrente da felicidade (como na canção), mas ninguém sabe exactamente o que ela significa. Para alguns, ser feliz é simplesmente poder respirar, ou apanhar um pouco de sol. Para outros, é ver a conta bancária a aumentar. Para outros, é infligir sofrimento a outros seres. A felicidade, em abstracto, é a grande panaceia da nosso tempo. O nirvana do hedonismo. De tal forma, que ser “infeliz” se tornou um anátema. É claro que podemos sentir-nos realizados, completos, amados, gratificados, etc. Mas nesses estados há algo reconhecível, palpável. Pelo contrário, “ser feliz” é um referencial quase metafísico.

4.Discretamente, tenho acompanhado alguns study case de pessoas onde impera a vaidade ou a ânsia de protagonismo. Tudo isto para chegar a algum entendimento sobre ambas as situações. A pergunta é: o que distingue um VAIDOSO de um NARCISISTA? O primeiro tem o domínio discursivo da situação. O segundo tem como preocupação obter o domínio prático, a partir de um modelo discursivo auto centrado. O vaidoso não tem o monopólio da vaidade. Longe disso. Vanitas vanitatum, já diziam os romanos com acerto. A sua originalidade é sobrepor-se ao colectivo em prol da sua imagem. Ao invés, o narcisista substitui esse colectivo por uma projecção de si próprio. O vaidoso quer ser notado, a qualquer custo. O narcisista cria o seu palco e a sua assistência. E se falhar nesse tabuleiro, é nele que retoma a seguir o mesmo jogo, agora com novas peças. O vaidoso sucumbe à sua tendência dominante, acabando, não raras vezes, por ser uma vítima de si próprio. O narcisista cria um programa de acção, onde os outros são simples marionetas. O primeiro é facilmente desmontado pela irisão do humor. O segundo é mais difícil de detectar. Muitas vezes, quando desmascarado, já é tarde demais.

5.Bem sei que “as pessoas” não gostam da realidade sem cuidados paliativos. E que, no caldeirão das memórias onde resgatamos a vitalidade possível, tanto podemos encontrar uma roda dentada que nos oprime, ou compor as asas que nos libertam. Um belo dia, percebemos que a vida não é um registo contínuo, mas uma sucessão de fotos que é preciso ligar para obter visão panorâmica. E perceber porquê é que negamos com unhas e dentes precisamente a mais crua evidência. De modo a que, quando essa realidade bate à porta, já temos a chaleira ao lume.

* No calendário vegetal celta, significa “bétula”

** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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