Desprendia as palavras como sopros leves. Eu agarrava-as e inundavam-me as mãos. Às vezes a alma. Sei bem o lugar onde me sentava. Na terceira carteira da terceira fila. A meio da sala. Como se ali o som das palavras tivesse o seu epicentro e o meu ser fosse um sismógrafo de emoções. A bondade escorria-lhe pelos poros e a aula era uma lição de literatura e de como aprender a existir.
O que dizia vinha de dentro, que os olhos nunca enganam. Uma humidade luminosa aclarava as paredes da sala. Éramos jovens a absorver os ensinamentos e o gesticular das mãos. Já depois da aula ter começado alguém batia à porta. Um quase ritual. Com a paz na voz lá dizia é o Albuquerque. Todos chegávamos atempadamente e nem a entrada tardia do Albuquerque arriscava beliscar aquela paz.
A literatura portuguesa passou a ser lida e sentida com outro vigor. Estranhamente, ou não, ainda me espanto quando dou por mim a lembrar de cor certas cantigas de amigo e de amor ou excertos do Menina e Moça. Li e reli Os Maias e voltarei a reler só para sentir o descompassar do coração. Mas são sempre as palavras do Eugénio de Andrade a ressoar nas palavras do professor que me atiram contra a parede e me cortam a respiração.
Quis o destino que o tivesse como professor também a Francês. E o André Gide a ecoar, ceux qui ont des yeux sont ceux qui ne savent pas regarder. Toda a minha visão se turvou e principiei a ler, como cega, as obras de Sartre e Camus na língua original. Quando havia um texto maior para ser lido por um aluno quase sempre me cabia a mim essa tarefa. O nervosismo que me assolava inicialmente foi-se desvanecendo e as palavras soltavam-se por si próprias. A minha boca purificava-se naquela serenidade transferida.
Guardo a memória do elevado grau de exigência a que nos submetia. Hoje olho para trás com outra nitidez e tenho a certeza que foi esse rigor sem imposição que me tornou mais forte. Fiz-me professora. Em início de carreira fomos colegas na mesma escola. Mas para mim ele seria sempre o professor. Noutra escola foi meu convidado para uma sessão sobre poesia. Não disse que não. E os laços que me uniam a ele desde os meus dezasseis anos foram-se reforçando.
O tempo foi passando e muito tarde, ou no tempo devido porque tudo tem o seu tempo, comecei a escrever. Poesia. Desde o primeiro livro o professor fez questão de estar presente. Um dia enchi-me de coragem e solicitei que fosse ele a apresentar um livro meu. Que seria uma honra para mim. Aceitou de imediato. Que seria uma honra para ele. O professor nunca soube dizer não. As pessoas simples são sempre as que mais dão de si. As pessoas sábias são sempre as mais simples.
De vez em quando ligamos para saber um do outro. Uma ou outra vez combinamos um café. Ele não sabe mas continua a ensinar-me. Quando comenta os meus textos. Quando me incentiva a continuar. Quando fala de si.
Continuo a ver aquela humidade luminosa nos seus olhos. E gosto. Faz-me clarear. Porque tenho sempre dezasseis anos.
Maria Afonso